O matemático do Instituto Superior Técnico Henrique Oliveira aborda algumas situações dinâmicas sobre os números da pandemia de covid-19.
CRESCIMENTO EXPONENCIAL
A incidência de hoje em Portugal (número de casos diários) por covid-19 subiu a níveis não vistos desde março, sendo sobretudo muito elevados na região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT). Existe, contudo, uma grande diferença sobre março: na altura estávamos a descer acentuadamente o número de casos, agora o crescimento tornou-se aproximadamente exponencial, o que significa que não existe pico previsível à vista.
Não há crescimento exponencial quando se quer, há aspetos técnicos que se têm de verificar.
O ritmo de criação de infeção na comunidade depende do número dos contactos entre suscetíveis (ainda não imunizados) e pessoas que estão a contagiar, isto é, numa fase da infeção em que um indivíduo infetado transmite com facilidade o vírus através da sua respiração, tosse ou espirros. Todavia, apenas na fase inicial da propagação dentro de uma comunidade onde não há casos anteriores, ou quando uma nova variante invade o lugar de uma anterior, menos rápida a propagar-se, o comportamento aproximado por esta função matemática tem um erro muito baixo e esta aproximação dura, sem modificação de parâmetros, um tempo longo.
Conseguimos ter a certeza deste comportamento quando os números da incidência crescem e, de forma simplista, quando a velocidade e a aceleração também crescem.
Nada melhor do que um gráfico para explicar o que se passa na região LVT. Quando olhamos para a curva dos casos reais e comparamos com o gráfico da função exponencial o comportamento é dado pela imagem seguinte, que compara a curva preta, a da função exponencial teórica, com a curva encarnada, que nos mostra os números diários da incidência em LVT em média móvel a sete dias. Vejamos os últimos 44 dias, que correspondem ao início de uma nova vaga.
Haver um pico à vista é sempre um sinal positivo, uma vez que, depois do dia em que esse pico acontece, os números vão começar a descer. No crescimento exponencial nunca há pico à vista.
Como se vê no gráfico, não há sinal de que o crescimento vá parar. Sabemos que terá de haver uma inflexão e um decréscimo no futuro, pois não é possível uma infeção que causa imunidade crescer ilimitadamente, mas não conseguimos dizer quando vão acontecer os pontos de inflexão e o pico. Para prever o ponto do pico temos de recorrer a leis de propagação mais sofisticadas, temos de prever comportamentos, políticas e resposta real do público, o que é virtualmente impossível.
Quando há crescimento exponencial puro, como agora em LVT, existe sempre um novo elemento dinâmico em ação, ou é o início de uma nova epidemia, como aconteceu em março de 2020, ou uma nova variante, como agora, ou o alívio descontrolado das medidas de contenção, como em janeiro de 2021 depois do desconfinamento catastrófico do período de Natal de 2020, feito em conjunto com a entrada da então chamada variante britânica.
Neste momento a situação de LVT tem uma quarta vaga a formar-se, é o início de uma nova situação dinâmica em que existe um elemento determinante novo. O elemento novo é a variante Delta, uma variante originária da Índia e que é, segundo as autoridades de saúde da Inglaterra, cerca de 60% mais contagiosa do que a variante anteriormente dominante em Portugal, a variante Alpha, ou variante britânica.
A variante Alpha foi detetada no programa de análises do Instituto Superior Técnico a 2 de dezembro de 2020 e no dia 21 de janeiro de 2021 já era de 70%. A variante Delta foi detetada a 21 de maio, tornar-se-á dominante em LVT mais depressa do que a Alpha se tornou, pois é mais rápida a espalhar-se. Estimamos que, depois dos cinco primeiros casos terem sido introduzidos, se torne dominante em 4 semanas, esse prazo está a acabar neste fim de semana.
A par de um desconfinamento, que trouxe a falsa euforia pós-pandémica, no concelho de Lisboa, esta variante Delta está a produzir o crescimento exponencial de casos. A sua introdução deve-se quase certamente a uma grande porosidade e descontrolo nas fronteiras, com entrada de indivíduos infetados vindos do exterior, nomeadamente de regiões de elevado risco, como o Reino Unido, Índia, Nepal, África e Brasil.
Não adianta muito lamentar a situação, que corresponde ao culminar de uma série de erros das autoridades portuguesas na gestão desta pandemia em Portugal. Agora é importante controlar a difusão desta variante, que é menos sensível à vacinação, mais contagiosa, mais rápida a evoluir e que suscita dúvida sobre a sua letalidade, atacando indivíduos mais jovens de forma grave.
GRAVIDADE ATUAL DA COVID-19 EM PORTUGAL
Sobretudo em Lisboa e Vale do Tejo está a começar o crescimento do número de internados e de casos em unidades de cuidados intensivos. Serão estes números, a subir desde o início de maio, o prenúncio de uma catástrofe anunciada, como a de janeiro e que, neste mesmo jornal, anunciámos angustiados nos meses de novembro e dezembro de 2020?
A resposta é clara: felizmente não temos condições para repetir a catástrofe de janeiro, é um elemento de serenidade e tranquilidade que é importante reforçar, mas os perigos ainda não se dissiparam.
A proteção da doença grave é devida à alta taxa de imunização natural e à elevada taxa de vacinação, com mais de seis milhões de doses administradas e com 25% da população com a vacina completa. Tendo vacinado quase completamente as classes dos mais de 70 anos, as mais suscetíveis a doença grave e óbito, e estando muito adiantados nas classes imediatamente abaixo, estamos a controlar a doença grave e a reduzir a letalidade da doença. Apesar de dúvidas sobre a eficácia da vacinação sobre a variante Delta, sabemos, por estudos que começam a surgir, que a vacina ainda assim confere proteção, embora menor.
Em maio de 2020 eram necessários 19 casos positivos para se obter um óbito, em maio de 2021 foram necessários 288 casos para termos o mesmo óbito, o que corresponde a uma descida real de mais de dez vezes. A doença ainda é severa, nenhuma outra doença isoladamente ocupa tantos recursos ao serviço nacional de saúde, nomeadamente em termos de camas nos cuidados intensivos. Dez por cento dos casos terão sequelas a longo prazo, e ocuparão o serviço nacional de saúde por mais de doze semanas após a alta, e alguns casos terão sequelas permanentes. No entanto, a mortalidade da doença, entre dois a três óbitos por dia, é ainda moderada no contexto das doenças respiratórias, que ceifam, em média, mais de trinta vidas por dia.
A letalidade da doença desceu de números acima de 3% para valores próximos de 0,37%. Vejamos, por exemplo, que temos uma incidência de 10.000 casos num dia futuro. Isso teria como consequência, pouco mais de duas semanas depois, 37 óbitos, quando em janeiro isso corresponderia a mais de 200 óbitos. Como a letalidade nas classes de mais de 70 anos baixou muito, estes óbitos seriam de pessoas de todas as idades. Significa também que teríamos 1000 pessoas, dentro dessas 10.000, a sofrer de sequelas de longo prazo que sobrecarregarão os serviços de saúde. Teremos quase certamente mais de três milhares de internados nesse dia nos hospitais e teremos, nesse dia, mais de 700 casos em cuidados intensivos, o que é uma fatia demasiado elevada para um país com um número baixo de camas em UCI e que terá de mobilizar recursos de outras áreas, descurando outros cuidados de saúde. Imagine-se o que isso poderia causar se a maioria dos 10.000 casos fosse em Lisboa, implicaria o total comprometimento de camas nesta região e transferência de doentes para outras regiões.
Os danos reputacionais seriam muito elevados e Portugal veria a sua indústria de turismo, mais uma vez, totalmente abalada pela crise.
É óbvio que números elevados da incidência têm de ser controlados. Propositadamente não mostramos projeções ou previsões mas, com o crescimento exponencial atual, a situação tem de ser revertida a breve trecho para evitar ainda as graves consequências de um crescimento deste tipo, a população tem sido extremamente sensata e espera-se que os comportamentos se moderem, para não estragarmos totalmente os enormes esforços e sacrifícios que temos feito.
Temos de pesar na balança a severidade atual da doença, os custos diretos em vidas e na saúde dos casos de covid-19 e, no outro lado, temos de considerar os efeitos nefastos, quer na saúde, quer na economia e, consequentemente, na sociedade, de medidas não farmacológicas, como confinamentos e restrições à liberdade de movimentos, de circulação e de convívio social. Mas um facto é certíssimo: não podemos deixar a incidência subir indiscriminadamente para valores de cerca de 10.000 por dia, o que poderá de novo acontecer, devido ao crescimento atual, sem medidas de recuo na zona de Lisboa e Vale do Tejo.
AS MEDIDAS GOVERNAMENTAIS
Face ao crescimento exponencial em LVT foi decidido pelo governo tomar a medida de fechar a área metropolita de Lisboa neste fim de semana.
Fechar a população na área de Lisboa terá o efeito único de “chatear as pessoas” sem quaisquer efeitos práticos que não sejam dar um sinal de que o Governo «tomou uma medida», deixando dois milhões e oitocentas mil pessoas a contagiar-se sem mais nenhuma medida adicional.
É uma medida muito limitada para evitar a propagação da variante Delta para outras regiões do país. Já é evidente a sua presença, pelo crescimento que está a começar a surgir, nas regiões Centro, Alentejo e Algarve. Os múltiplos contactos com a capital que existem durante a semana também assegurarão a disseminação da variante Delta de forma liberal e rápida por todo o país. Cria-se assim a falsa segurança de que a variante está confinada a Lisboa e Vale do Tejo.
Não fazer nada na zona LVT é também uma má decisão. Sabe-se, de certeza absoluta, que dentro de poucos dias o Governo terá de, aplicando as cegas e burocráticas regras que criou para outra situação dinâmica, outra variante menos agressiva, e outra severidade da doença, recuar no concelho de Lisboa e em muitos outros onde a variante Delta corre quase livremente. É caso para dizer que se deixa o incêndio a espalhar-se para, uma semana depois, se tentar combater o fogo que se espalhou de forma incontrolável e cujos custos serão muitíssimo mais elevados nessa altura, obrigando a maiores sacrifícios.
A primeira regra de combate a uma epidemia é atuar de forma rápida. Não atuar de forma imediata custou, sem exagero, milhares de vidas em janeiro. Estamos a cometer o mesmo tipo de erro em junho de 2021, uma vez que a vacinação não acontecerá a tempo para controlar a variante Delta.
Deixar a pandemia crescer livremente na área metropolitana de Lisboa, com incidências no concelho central de Lisboa acima dos 240 casos por cem mil habitantes em 14 dias, é mais um erro crasso. Com a taxa de crescimento exponencial atual e sem mais medidas na área metropolitana, a mensagem subliminar é clara para uma fatia significativa da população portuguesa:
– Aproveitem a festa, celebrem o futebol. Comei e bebei agora, que para a semana vamos confinar.
Artigo de opinião publicado pelo nosso parceiro Expresso