Na contracapa do livro, “Seja feita a tua vontade”, por Paulo M. Morais, Casa das Letras, 2017, com rara felicidade da concisão, introduz-se o leitor nos labirintos da trama, aliás de uma urdidura original: “Um médico octogenário, cansado de lutar contra os bichos que imagina devorarem-lhe o corpo, decide que não quer continuar a viver. Metódico e informado, prepara a sua morte: ocupa um quarto da casa, comunica à família as suas intenções e deixa, pura e simplesmente, de se alimentar. Apesar do choque inicial que a notícia provoca, um dos netos resolve ajudá-lo a cumprir a sua última vontade. Visita-o diariamente, e as horas que passam juntos a rememorar o passado e a conversar sobre os tempos que se aproximam constituem uma terna despedida, uma espécie de luto pacificado. Mas eis que, numa reviravolta completamente inesperada, o médico acorda um dia com uma súbita vontade de viver… E essa atitude intempestiva, em lugar de representar um alívio, abala a já conquistada serenidade, dando lugar a uma convulsão em que o mesmo afeto é posto em causa”.
Se podemos considerar que o pano de fundo é por de mais conhecido, e que dá pelo nome de eutanásia, cuidados paliativos, morte doce e outras expressões em voga, é a comunicação entre gerações que prima na narrativa. Não será por acaso que o autor abre com uma citação de João Guimarães Rosa: “Moço: toda a saudade é uma espécie de velhice”.
Temos um neto altamente interpelativo, a ele irá caber o papel de recordar, a partir da sua infância, o tipo extraordinário que houve naquele homem que perdeu vontade de viver. Não é um avô qualquer, diz-se no portal da história: “Conseguiste ser imenso na minha vida, apesar das tuas dificuldades na expressão dos afetos. Tu, tal como toda a nossa família deste lado paterno, nunca foste de abraçar (…) No último par de anos extravasaste a condição de avô (o único que tive, porque o avô materno não merece o mesmo título que tu), e passaste a ser, sobretudo, o avô mal soletrado pela minha filha pequenina”.
É um discurso onde se vai pontuando aquela decisão da abandonar a vida, parece irrefragável o desejo de morrer. É uma decisão que se tem que aceitar, para melhor lhe corresponder, o neto, numa forma diarística, dá conta de conversas, da própria decomposição do corpo, o leitor é posto diante de um quadro irreversível, sob uma forma coloquial: “Terça-feira. Encontro-te a dormir. A barba branca ganhou terreno no teu rosto – anteriormente escanhoado, como se espera de um militar – mas não disfarça as faces encovadas, queres chupar laranjas. Faltam-te energias para grandes conversas”. E há aquela história dos parasitas, com toda a sua carga metafórica de inimigo oculto que só perturba a quem sofre a intrusão, completamente invisível à vista desarmada. Aquele avô desamparado ressuscita histórias, na passagem dos dias. Aqueles bichos escapam à medicina, são fruto de demência, alegam os médicos que o viram. Prestes a morrer, aquele avô dá sinais de estar a ganhar aos bichos. “Os bichos esfarelados equivalem à alma lavada”.
Todos os dias aquele avô levanta interrogações, o neto forja cartas, são formas de agradecimento onde se fazem indagações sobre o futuro e o futuro é a bisneta daquele moribundo. É uma longa viagem sobre a vida comum neto-avô, há histórias de filmes, há clarificações afetivas (somos da mesma família mas não somos iguais) e, inopinadamente, dá-se a reviravolta, quem estava pronto a morrer ergue-se para a vida, fartou-se de jejuar, aquela ressurreição faz estalar o pandemónio onde havia resignação, vem à memória recordações sombrias.
O avô vai ser sujeito a internamento hospitalar, mas onde houver encanto naquela relação de final de vida a reviravolta introduziu a baralha nos sentimentos do neto, este diz mesmo que se sente prestes a esquecer como aquele avô fora importante na sua vida.
Quem parecia alentado para a ressurreição acabou prostrado, perdeu o combate. “No hospital disseste o teu nome à psiquiatra que te avaliou, mas omitiste qual o familiar que te acompanhara. Presumo que não quisesses impor a ninguém a culpa de teres ido ali parar”.
Estamos pois num novo patamar de relacionamento, da tensão o neto encaminha-se para a confissão amorosa, desvela-se o embevecimento por aquele avô que tudo procurava ensinar, com regozijo e muita cintilação. Abre-se o baú, os dossiês de poemas do avô, ficaremos a saber os grandes nomes por ele creditados quanto à beleza humana, aos filmes, aos bailados, à literatura, à música clássica, futebolistas, tenistas, paisagens tranquilas. Findo o funeral, o que resta fazer, por onde caminha a memória, onde bate o coração? É naqueles dossiês que está a chave do segredo, aquele amor neto-avô é interminável: “Agora guardo comigo tudo o que ainda tens para me contar. Caixa de cartão é um pedido para que aproxime o meu ouvido da tua boca e oiça mais uma história. Uma história escrita por ti. E consigo imaginar a tua silhueta esguia, recostado num comboio-slide, de mãos entrelaçadas atrás da nuca e pernas esticadas, a partir sem destino traçado, sem pressa de chegar à estação cujo nome desconhecemos, a aproveitar o suave trepidar da carruagem para dormitar um pouco, até me despertares com ligeiro toque no ombro e um sussurro ao ouvido”. Depois da convulsão daquele moribundo, veio a serenidade, fez-se a vontade ao avô, enceta-se uma viagem interminável com tudo o que de bom a candura nos deu no berço, tal e tanto era aquele avô extraordinário.
Compreende-se perfeitamente como é que este romance foi finalista do Prémio Leya.