Tido no passado como um “marginal excêntrico”, Aleksandr Dugin tornou-se em pouco tempo um “especialista” russo próximo ao poder. Em 2001, pouco depois de Vladimir Putin ter assumido a Presidência da Federação Russa, o “filósofo” já tinha estabelecido laços estreitos com a administração presidencial, com os serviços secretos, Forças Armadas russas e mesmo com a Duma [Parlamento russo]. De acordo com o site norte-americano “The Bulwark”, chegou mesmo a tornar-se consultor do presidente da Duma, Gennady Seleznev, e do principal conselheiro de Putin, Sergei Glazyev. Nesse momento, a imprensa russa, ainda relativamente livre, começou a caracterizar o “eurasianismo de Dugin” como uma nova ideologia favorecida pelo Estado.
O “movimento da Eurásia”, a doutrina que pedia resistência em relação aos “atlanticistas”, influenciou funcionários do Governo, órgãos dos ‘media’ locais e membros de serviços secretos e de segurança do país. Em 2003, o movimento já se tinha internacionalizado e estava presente em 29 países da Europa, América e Médio Oriente, bem como nas ex-repúblicas soviéticas. A sua ala mais ativa era a União da Juventude Eurasiática, muito focada no ativismo pró-Kremlin na Ucrânia.
MAS AFINAL QUEM É ALEKSANDR DUGIN?
Há mais de 25 anos que Aleksandr Dugin, apelidado de o “cérebro de Putin” ou até de “Rasputin de Putin”, fala sobre uma eterna guerra civilizacional entre a Rússia e o Ocidente e sobre o destino da Rússia de construir um vasto império eurasiático, começando com a “reconquista” da Ucrânia. A guerra que eclodiu a 24 de fevereiro é um marco que a visão do dissidente e “filósofo” político já profetizava.
Não há provas concretas de que o homem de 60 anos mantenha contacto com Vladimir Putin, mas a influência política que Aleksandr Dugin exerce é inegável, tal como a sua proximidade às classes dominantes e à elite russa, sustenta o site “The Bulwark”. O “Financial Times” em Moscovo entrevistou várias vezes esta figura controversa e admite não ter conseguido decifrar o grau de envolvimento de Aleksandr Dugin com Putin.
O FASCISMO E O OCULTISMO DE ALEKSANDR DUGIN
Aleksandr Dugin é um autoproclamado fascista, embora seja dos que defendem que “o verdadeiro fascismo nunca foi tentado”. Tentou abandonar o rótulo, mas a ideologia que professa não mudou muito. Num livro datado de 2017, que versava sobre a ascensão do novo nacionalismo na Rússia, é caracterizado como “um ex-dissidente, propagandista, ‘hipster’, poeta, guitarrista, que emergiu da era libertina e boémia de Moscovo pré-perestroika para se tornar um intelectual agitador, um conferencista na academia militar e, finalmente, um agente do Kremlin”.
A obsessão que manteve mais presente ao longo da vida foi o ocultismo. Um vídeo de 1195 mostra o dissidente político, em Moscovo, a exaltar o legado do mágico e mercenário Aleister Crowley, por meio de um poema. Na sua primeira aparição na televisão russa, em 1992, foi descrito como um “comentador especialista” num documentário que explorava os segredos esotéricos do Terceiro Reich, que afirmava ter estudado nos arquivos do KGB.
A VIDA E OBRA… ACERCA DA MORTE
Apesar de hoje ser crítico daqueles a que chama de “nazis ucranianos”, em tempos escreveu um poema que enunciava o advento apocalíptico de um “avatar”, que culminava com um “radiante Himmler” a emergir do túmulo. Mais tarde, Aleksandr Dugin negou a autoria destes versos, mas o excerto já tinha sido publicado no seu site com um pseudónimo que já tinha reconhecido como seu.
A obra de Aleksandr Dugin também inclui um ensaio, datado de 1997, que propunha que o assassino em série russo Andrei Chikatilo, autor da morte de mais de 50 mulheres e crianças entre 1978 e 1990, deveria ser considerado um praticante de “sacramentos” dionisíacos nos quais o algoz e a vítima transcendem o seu “dualismo metafísico” e se tornam um só. Muitas declarações lhe são atribuídas no que concerne ao júbilo de viver no “fim dos tempos”.
Muitos detalhes da biografia de Dugin são desconhecidos, também devido a uma mistificação deliberada. Uma das teorias defendidas é a de que o pai do filósofo russo era coronel ou tenente-general do GRU, a temível agência de inteligência militar soviética, tendo usado essa posição para facilitar o acesso às elites militares. No entanto, o investigador Anton Shekhovtsov afirma que o pai de Aleksandr Dugin era uma autoridade da alfândega soviética, mais tarde russa. O jornalista do “Financial Times” que entrevistou Dugin alegou que as travessuras juvenis e atos de rebeldia do dissidente político – que incluíam o envolvimento, aos 19 anos, num círculo que se interessava pelo misticismo com uma inclinação neofascista e que se reunia em locais subterrâneos – fizeram com que o pai fosse transferido do GRU para o serviço de alfândega.
Expulso da faculdade por manter atividades controversas, como a tradução e publicação ‘samizdat’ [método que contornava a censura soviética] de obras com uma inclinação mística do intelectual italiano de extrema-direita Julius Evola, Aleksandr Dugin chegou a exercer como professor de idiomas e tradutor. Em 1988, contudo, já estava enredado no movimento “patriótico, antissionista e antissemitista” designado “Memória”, tendo sido expulso por práticas satânicas. Mais tarde, viajou para a Europa e começou a estabelecer laços com figuras da extrema-direita, como o autor francês do contra-iluminismo Alain de Benoist.
A DEFESA DO SANGUE E DA TERRA
Após a dissolução da União Soviética, Aleksandr Dugin passou a envolver-se em vários grupos marginais que tentavam sintetizar a ideologia de extrema-esquerda e extrema-direita. Esses movimentos incluíram o Partido Nacional Bolchevique que cofundou com o poeta Eduard Limonov. Num ensaio de 1992, Aleksandr Dugin fez a defesa do termo “vermelho-castanho”, que dizia serem “as cores naturais do [nosso] sangue e solo”. Outro artigo, de 1997, saudava o renascimento de um novo fascismo russo, com as cores da terra e do sangue.
Quando concorreu à Duma, em 1995, pelo distrito de São Petersburgo, o filósofo russo obteve, no entanto, menos de 1% dos votos, apesar do cartaz de campanha que prometia: “Os segredos serão revelados.”
A ascensão aconteceu sem a opinião pública se ter dado conta. As ligações misteriosas a os militares russos levaram-no, durante a década de 1990, a tornar-se professor na Academia Militar do Estado-Maior Geral das Forças Armadas da Rússia.
Com a obra de 1997 “Fundamentos da Geopolítica: O Futuro Geopolítico da Rússia”, um tratado de 600 páginas que fez vendas significativas, Aleksandr Dugin tornou-se, enfim, um autor e especialista respeitado. O livro tornou-se rapidamente parte do currículo da Academia do Estado-Maior General, de outras academias militares e da polícia e de algumas instituições de elite do ensino superior. O especialista da Hoover Institution John B. Dunlop escreveu que “talvez não tenha havido outro livro publicado na Rússia durante o período pós-comunista que exerceu uma influência sobre as elites militares, policiais e de política externa russas comparável” à da obra de Aleksandr Dugin.
Os livros anteriores do autor enveredavam pela numerologia e outras práticas místicas, ordens esotéricas, maçonaria, e ainda temas como os cavaleiros templários e os rosacruzes. Em “Fundamentos da Geopolítica”, o filósofo ofereceu uma análise muito mais sóbria e evitou o misticismo e a metafísica. No entanto, o tema de uma batalha cósmica entre o bem e o mal ainda fazia parte da tese de Dugin, que postulava um antagonismo fundamental entre civilizações “baseadas em terra” e “marítimas”, ou “eurasianismo” e “atlanticismo”, este último representado principalmente pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, e o primeiro pela Rússia. A “luta espiritual” que o livro defendia inspirava-se, entre outros, em Carl Schmitt, representante proeminente do nazismo alemão.
O dissidente político que gerava muita controvérsia sublinhava os valores das civilizações baseadas na terra como os do tradicionalismo: “A dureza da terra é culturalmente incorporada na dureza e estabilidade das tradições sociais”. E depois enumerava esses valores: comunidade, fé, serviço e subordinação do indivíduo ao grupo e à autoridade. Eram tradições que se opunham, segundo vincava, aos valores da civilização marítima: mobilidade, comércio, inovação, racionalidade, liberdade política e individualismo. Ou, de uma forma mais simplista: a Eurásia era positiva e o Ocidente negativo.
A outra mensagem central do livro era a de que, para a Rússia, só haveria duas hipóteses: império ou fracasso. Aleksandr Dugin analisou que o nacionalismo russo tem um “âmbito global”, associado mais ao “espaço” do que aos laços de sangue. “Fora do império, os russos perdem a sua identidade e desaparecem como nação.” A visão do “guru” nacionalista é de que o destino da Rússia é liderar um império eurasiáticoo que se estende “de Dublin [Irlanda] a Vladivostok [cidade russa junto à fronteira com a China e com a Coreia do Norte]”.
Como nota o site norte-amerficano “The Bulwark”, num país que “cambaleava, numa transição “mal conseguida” para uma democracia assente no mercado e que lidava com a perda abrupta do estatuto de superpotência, o apelo à grandeza imperial encontrou bases férteis, e apresentou-se como uma retórica empoderadora junto das elites militares e políticas.
AS PREOCUPAÇÕES DE ALEKSANDR DUGIN COM A GUERRA
No seu último texto conhecido, Aleksandr Dugin manifesta-se apreensivo. O autor receia que a liderança da Rússia pense que pode declarar vitória depois de “manter” Donets, Luhansk e Kherson em mãos russas, ou talvez depois de tomar toda a “Novorossiya” [Nova Rússia, a união das intituladas Repúblicas Populares], mas deixando o resto da Ucrânia “no poder de nazis e globalistas”.
O “guru” insiste que, neste momento, a Rússia não pode contentar-se com nada que não seja o controlo total de toda a Ucrânia, porque “Cristo precisa disso” e porque sair significaria a “morte, tortura e genocídio” de milhões de crentes ortodoxos. Recorrendo a um dos seus temas familiares, afirma: “Não nos tornaríamos apenas espectadores, mas participantes do Apocalipse.”
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL