A atribuição da Marca do Património Europeu (MPE) ao Promontório de Sagres, em dezembro de 2015, veio confirmar a relevância deste território na Europa, quer como finisterra estratégica, integrada na conjuntura histórica do pioneirismo da expansão marítima portuguesa, quer pelo impacto que este processo causou na tradição cultural da civilização europeia moderna.
Esta marca vem também reconhecer a riqueza e excecionalidade da paisagem cultural que lhe está associada, finisterra, que compreende: uma das maiores concentrações de monumentos megalíticos de toda a Europa; um importante centro de peregrinação moçárabe que teria ali existido – a Igreja do Corvo; a Ermida de Nª Sr.ª de Guadalupe; uma rede de fortificações associadas à Fortaleza de Sagres; e Lagos, que constituiu o primeiro “cais de partida” das viagens patrocinadas pelo Infante Dom Henrique, lugar que também receberia um dos primeiros grupos de negros escravizados, capturados por europeus, no século XV, e que integra o antigo “Mercado dos Escravos” e o “cemitério” do Vale da Gafaria, ou, mais precisamente, o lugar de depósito de defuntos escravos negros.
Atualmente, o projeto MPE integra um total de 48 sítios ou bens patrimoniais, que podem ser consultados através do seguinte mapa interativo: https://geo.osnabrueck.de/ehl/PT/map. Podemos observar como o século XX se encontra bem representado, sendo este o período da história de que ainda existem memórias vivas do horror, da barbárie e de tantas atrocidades cometidas. Os antigos campos de concentração de Westerbork (Holanda) ou de Natzweiler e campos anexos (França /Alemanha) ou ainda o Memorial de Sighet (Roménia) são exemplos desses lugares de memória que foram distinguidos com a MPE e que nos permitem olhar para os lados “mais negros” e mais recentes da História Europeia.
Mas, afinal, o que terão estes lugares em comum com o Promontório de Sagres?
Não podemos continuar a desenhar fronteiras entre os aspetos positivos e negativos do passado, da história ou do património, de forma a vermos o que se conjuga com os valores da contemporaneidade que queremos acarinhar, ou com determinado discurso político. Devemos reconhecer que o património integra todos estes aspetos. Aliás, como vários investigadores defendem, todo o património é intrinsecamente dissonante. O Promontório de Sagres não é diferente. A questão é que existem aspetos desse passado europeu – a exploração, a subjugação, a escravatura – que constituem, também, consequências diretas dos “descobrimentos portugueses” e da expansão da cultura europeia. No entanto, verifica-se que continuam a ser temas difíceis de abordar, e que a violência associada a este período continua a ser muitas vezes omitida.
O projeto MPE, ao expor as múltiplas significações e narrativas patrimoniais, que são por vezes dissonantes e conflituosas, torna mais fácil de avaliar se o passado e o património associado são utilizados para manter o statusquoou se podem ser utilizados para a construção de um futuro mais inclusivo, mais democrático e, potencialmente, mais justo e próspero.
O Promontório de Sagres representa um lugar feito Mito e um lugar feito Símbolo, de abordagem sensível e complexa, não apenas pela riqueza e diversidade da sua paisagem cultural, mas, acima de tudo, porque foi sujeito a um processo de “solidificação patrimonial”, de forma muito intensa durante o século XX, com a permanente e repetitiva reciclagem de práticas discursivas, integrando, por vezes, novos elementos, mas mantendo, na essência, a mesma narrativa.
Vemos que o processo de construção patrimonial se fortaleceu a tal ponto, em torno de uma mesma narrativa, que se torna difícil, mesmo nos tempos atuais, desconstruir essa prática e dar lugar a novas práticas discursivas, mais inclusivas, abrangentes, polifónicas e que ultrapassem a fronteira do “discurso patrimonial autorizado”.
Pode a Marca do Património Europeu ajudar a ultrapassar este discurso com práticas mais inclusivas? Este é um caminho que só agora se iniciou…
Raquel Roxo
(Técnica superior da Direção Regional de Cultura do Algarve)
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de dezembro)