“Guerra pode começar esta quarta-feira”, titulavam as notícias nos dias que antecederam a invasão russa da Ucrânia. Muitos cidadãos reagiram com escárnio: “Não me dá muito jeito. Pode ser na sexta?”. A piada era boa – as guerras não têm dia e hora marcada – mas desvalorizava o trabalho de antecipação feito pelos serviços de informações dos EUA e do Reino Unido.
“Os Estados Unidos da América já soam os alarmes sobre as intenções da Rússia desde a primavera do ano passado”, lembra ao Expresso Craig Nazareth, ex-oficial de informações militares e professor na Universidade do Arizona. Em abril de 2021, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, alertou para “a maior concentração de tropas russas” nas fronteiras com a Ucrânia desde 2014. As imagens de satélite foram confirmando as previsões durante os meses seguintes. Em janeiro, os serviços secretos da Estónia escreveram que a Rússia estava pronta para iniciar uma “operação militar de grande escala” contra a Ucrânia – algo que os EUA reforçaram no início de fevereiro.
Os sinais estavam todos lá e foram quase todos públicos. “O principal objetivo de revelar tantas informações sobre a mobilização russa terá sido o de dissuadir Putin de avançar com a invasão. Mesmo assim, acho que a estratégia foi bem sucedida”, diz ao Expresso Stephen B. Long, especialista em estudos da guerra na Universidade de Richmond.
A partilha de informações sensíveis é comum entre aliados numa situação de guerra, mas o conflito na Ucrânia trouxe uma mudança de paradigma nesta área tradicionalmente envolta em secretismo: a divulgação pública a um ritmo diário. O atual sucesso da resistência ucraniana deve-se às armas norte-americanas, mas também às informações sensíveis partilhadas pela ‘intelligence’ de Washington e Londres – incluindo detalhes sobre a localização de mísseis russos e respectivos alvos, combinados com atualizações sobre a situação no terreno.
Esta estratégia terá ajudado a expor as verdadeiras intenções de Putin e a unir a NATO. “Divulgar informação oferece transparência e credibilidade para contrariar as narrativas russas”, acrescenta Nazareth. Além disso, aponta o perito, acelerou as sanções e a doação de armamento, “o que tornou esta guerra num pântano para a Rússia”.
A transparência da informação é uma das características das democracias, e pode ajudar a explicar o porquê de o Ocidente estar em vantagem. “O espião tradicional é apenas uma das ferramentas disponíveis hoje em dia”, diz Stephen B. Long. A intercepção das comunicações do inimigo e as imagens de satélite continuam a ser métodos preciosos, mas as informações passaram a ser obtidas sobretudo através de “open source ‘intelligence’”: informações públicas, como notícias de jornais ou vídeos e publicações nas redes sociais, o tipo de fontes que ganharam relevância nos últimos anos à boleia dos avanços tecnológicos. Foi através de informações open source que o mundo ficou a conhecer o símbolo ‘Z’ nos veículos militares russos, por exemplo.
A FALTA DE PREPARAÇÃO EUROPEIA
Ao contrário dos EUA e do Reino Unido, a União Europeia não vislumbrou a iminência da guerra. Um exemplo: Bruno Kahl, diretor dos serviços secretos da Alemanha, estava em Kiev para reuniões no dia em que a invasão russa começou. Teve de ser resgatado de urgência por uma equipa de operações especiais.
Em França, os serviços de informações pensavam que a conquista da Ucrânia “teria um custo monstruoso e que os russos tinham outras opções”, disse em março o chefe do Estado-Maior do Exército francês, Thierry Burkhard, dando a entender que as secretas francesas só se aperceberam que a guerra era iminente na noite da véspera. O diretor das informações militares, o general Eric Vidaud, foi despedido do cargo pouco depois do início do conflito, com várias fontes a citar a sua incapacidade de antecipar a ameaça russa como a principal razão.
A própria Ucrânia subestimou Putin: um assessor de Zelensky com a pasta da ‘intelligence‘ acreditava que o presidente russo estava a fazer bluff até ao primeiro dia da guerra, embora os alertas indicassem em sentido contrário. “Apesar das capacidades demonstradas pelos aliados ocidentais para detectar as atividades russas e a vontade de partilhar essa informação, nem todos os parceiros chegaram às mesmas conclusões”, lamentava há dias um grupo de peritos na plataforma “War on the Rocks”.
Entretanto, as secretas alemãs já mostraram serviço: em abril, interceptaram mensagens russas sobre as atrocidades cometidas contra civis em cidades como Bucha, confirmadas com imagens de satélite. Seguindo o exemplo norte-americano, as conclusões foram divulgadas e serviram para a justiça alemã começar a construir um caso contra Moscovo por alegados crimes de guerra.
OS EUA AJUDARAM A MATAR GENERAIS RUSSOS? É PROVÁVEL
A avalanche de informação já trouxe percalços à estratégia de comunicação ocidental. No início de maio, o “The New York Times” noticiou que a ‘intelligence‘ norte-americana ajudou as forças armadas a matar generais russos. O Pentágono apressou-se a desmentir a notícia, sublinhando que não partilha a localização de chefes militares russos, mas confirmando que ajuda a Ucrânia a defender-se em contexto de batalha.
“O Pentágono teria sempre de desmentir a notícia, caso contrário estaria a admitir uma participação ativa na guerra”, diz ao Expresso José Manuel Anes, membro do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT). Stephen B. Long, também professor de política externa norte-americana, não sabe se informações sobre generais russos foram partilhadas. “De qualquer forma, os generais russos presentes em território ucraniano são alvos legítimos em tempos de guerra.”
Verdade ou não, a polémica terá contribuído para Joe Biden pedir mais decoro aos seus espiões: as fugas de informação são contraproducentes e “distraem-nos do nosso objetivo”, terá argumentado o Presidente dos Estados Unidos durante um telefonema com o diretor da CIA, entre outros responsáveis.
Antes deste episódio, a campanha de ‘intelligence‘ já tinha tremido. Menos de 24 horas depois do início da invasão, Washington garantiu que Kiev – e o Estado ucraniano – poderia cair em apenas três ou quatro dias. A fácil anexação da Crimeia, em 2014, contribuiu para essa avaliação. Mas a previsão estava errada e mostrou como as autoridades norte-americanas podem ter sobrevalorizado a capacidade e organização das forças armadas russas.
Os EUA também não acautelaram o factor humano. “Podes contar o número de tropas na fronteira, podes contar o número de aviões, podes contar o número de tanques. Mas isso pode não dar uma previsão de como essas tropas vão lutar, se estão organizadas, se estão motivadas para combater”, dizia uma jornalista da NPR no início de abril, lembrando que muitos militares russos entraram em território ucraniano sem sequer saber que estavam a começar uma guerra.
No final de março, o mais alto general norte-americano na União Europeia admitiu que podem ter existido “lacunas de informação” no trabalho realizado por Washington. “Quando esta crise acabar vamos rever as nossas ações para perceber em que áreas podemos melhorar”, disse o general Tod Wolters numa audição no Senado dos EUA, que, entretanto, já pediu uma avaliação interna sobre o trabalho das secretas.
SECRETAS RUSSAS: DESORGANIZAÇÃO E IMPREVISIBILIDADE
A informação é mais escassa do outro lado da guerra, e isso torna as falhas mais visíveis. No dia anterior ao da invasão, a 23 de fevereiro, Putin humilhou publicamente o chefe dos espiões russos – obrigando-o a mudar em directo a sua opinião sobre a independência das regiões separatistas do Donbas.
Nem de propósito, os serviços de informação norte-americanos indicaram, no início de abril, que os chefes militares russos estavam a mentir a Putin, com medo de revelar a verdade sobre a situação no terreno. Em simultâneo, vários altos responsáveis dos serviços de informações russos (FSB, antigo KGB) terão sido afastados e detidos – incluindo Sergey Beseda, responsável máximo da ‘intelligence‘ estrangeira (equivalente à CIA).
Em parte, o falhanço das secretas russas deve-se ao facto de Putin viver cada vez mais numa “bolha informativa”, coordenada ao milímetro pelos membros do seu gabinete presidencial. “A instituição atua como um gatekeeper e impede que quaisquer informações negativas cheguem ao seu conhecimento”, escreveu Stephen Hall, especialista em relações internacionais russas, num artigo publicado na “The Conversation”.
A distorção dos factos para encaixarem numa determinada visão do mundo é só uma parte do problema. A outra é “o facto de os diferentes serviços de segurança russos competirem e sabotarem-se entre si, na esperança de agradarem a Putin”, diz Hall. Porém, a possível ignorância do presidente russo sobre o andamento da guerra só a torna mais perigosa e imprevisível. Há poucos dias, Putin nomeou um novo responsável das informações na guerra da Ucrânia: Vladimir Alexeyev, chefe da agência militar de informações russa (GRU).
Até agora, o sucesso dos serviços de informações esteve dependente do sigilo. “Mais do que qualquer acontecimento nos últimos 50 anos, a invasão russa da Ucrânia mostra que isso já não é verdade”, refere o artigo da “War on the Rocks”. A tecnologia está a tornar estes serviços mais abertos e isso tem riscos: divulgar demasiada informação pode servir os interesses de Putin, sobretudo se não for sólida o suficiente ou tiver sido mal analisada. O falhanço das secretas norte-americanas no Iraque ainda está presente na memória ocidental, por exemplo.
No entanto, o desenrolar do atual conflito também mostra a importância desta área para o futuro da segurança ucraniana e mundial. “Investir em serviços de informações é um pouco como ter um seguro: o seu valor só se torna claro no momento em que é necessário”, finaliza Long.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL