“Ninguém quer falar sobre a morte mas ela existe.” João de Bragança é presidente da Comissão diretiva da Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro e, esta quarta-feira, quando arrancou o mês da sensibilização para o cancro pediátrico, foi uma das vozes pela petição do aumento do número de dias de licença de luto parental. Quando há 20 anos lhe morreu a filha Madalena, de sete, foi trabalhar ao fim de cinco dias. “Foi um automatismo”, explica em entrevista ao Expresso. Agora, quando olha para trás, percebe a importância de ter mais tempo e de como nos dias de hoje há uma maior consciência da desestruturação que fica numa família após a morte de um filho.
“Eu vivia num meio urbano, nunca tive de mudar de cidade, tinha uma rede social, familiar e financeira forte. A minha mulher não trabalhava. Eu tinha uma rede social muito substancial. Agora, as casas da Acreditar estão cheias de famílias que ficam um ano fora de casa. Essas pessoas são vítimas de uma desestruturação brutal, com perdas de rendimento, de afetos, de estabilidade familiar; com perda de contacto com um irmão ou de um pai que normalmente tem de ficar longe para trabalhar. Os irmãos acabam por ficar entregues aos avós ou tios. Isso tem de ser remendado e a ferida, após a morte, tem de ser bem tratada”, sublinha.
A Acreditar lança esta quarta-feira uma petição para o aumento do número de dias de licença parental. Porquê agora e no que consiste?
A ideia da petição e do luto parental é uma coisa que já discutimos internamente há algum tempo, faz parte de uma ideia de continuidade que temos relativamente às crianças e às famílias das crianças com cancro. No limite, gostaríamos de estar com os pais no minuto em que sabem o diagnóstico para os podermos acompanhar a partir daquele instante, porque temos 27 anos de experiência a lidar com estas situações. Vamos acompanhando os pais durante os tratamentos e nas diferentes fases da vida. Não nos fazia sentido deixar de acompanhar os pais num momento como é a perda de um filho. Infelizmente, sabemos que, embora hoje em dia a taxa de sobrevivência [ao cancro infantil] seja muito grande, há sempre pais que perdem os filhos. Obviamente estamos a pensar nos pais da Acreditar, mas esta é uma ideia generalizada e não apenas para os pais da nossa associação. Não fazia sentido que um pai ou uma mãe após perder um filho perdesse o nosso apoio e que sentíssemos que a parceria acabava. A ideia é proteger e defender os interesses, o bem-estar social, económico, saúde e estabilidade do princípio até ao fim. Esta petição parece-nos ser uma boa maneira de o fazer. Ao mesmo tempo estamos em setembro, que é o mês mundialmente dedicado à sensibilização para o cancro pediátrico.
“Um pai ou uma mãe está muito preocupado com o filho doente, depois tem um desgosto com o filho que morre e depois, de repente, quando dá por si, percebe que não olhou para os outros filhos”
O que é que a legislação portuguesa prevê atualmente nestas situações?
A lei diz que, por morte de um filho, um pai ou uma mãe têm direito a cinco dias de licença. Parece-nos claramente pouco. Quem passou por esta experiência – e é o meu caso – sabe que se um filho morre não é enterrado no dia seguinte, que são pelo menos dois dias. Sobram três dias e depois têm de estar prontos para ir trabalhar?
É a mesma que quando morre um pai ou uma mãe, correto?
Um pai, uma mãe, um sogro ou uma sogra. É exatamente o mesmo. Se morrer o filho, o pai ou um sogro é exatamente o mesmo tempo de licença e parece-nos que há aqui uma violência muito grande para um pai ou uma mãe estarem preparados. Há dramas mais rápidos, outros mais prolongados. Seja qual for parece-nos de uma grande violência.
Não sendo possível ter um número certo de dias adequados a todas as pessoas, qual é o tempo que considera ser adequado para os pais passarem por este processo com mais tranquilidade?
Não há nada que diga qual o tempo suficiente. Há pais que ao fim de 20 anos não fizeram o luto, outros que ao fim de cinco dias já fizeram, tudo depende do enquadramento familiar, do sentido que cada um dá aquilo que acontece. Achamos que 20 dias consecutivos é aceitável. Se me perguntar se devia ser mais ainda? Talvez sim. Mas ao mesmo tempo há pais que gostariam de voltar ao trabalho logo após os cinco dias. E isso é uma faculdade que lhes deve ser dada: voltarem ao trabalho se quiserem mas se precisarem de mais tempo para se reconstruírem também lhes deve ser permitido. Cinco dias dá mesmo para muito pouco. Dá para fazer as coisas quase burocráticas e pouco mais.
Para que chegam esses cinco dias?
Friamente, basta pensarmos que o funeral por vezes nem é feito no dia seguinte, porque depende das condições em que se morre, e pode ser só dois ou três dias depois – seja porque vai para a província ou porque é uma cremação e não há vaga. Estamos a pensar que enterramos um filho e estamos a dar início ao primeiro passo do fecho que é quando se procede ao funeral. Depois sobram dois dias e isso não dá para nada. Dá para mudar um quarto, tirar a roupa, substituir coisas… E há um aspeto que é muito importante e que nem sempre pensamos: os irmãos. Os irmãos são muitas vezes o elo mais descurado pela natureza das coisas. Um pai ou uma mãe está muito preocupado com o filho doente, depois tem um desgosto com o filho que morre e depois, de repente, quando dá por si, percebe que não olhou para os outros filhos. Portanto, também há esse processo de redefinição de uma dinâmica familiar e do restabelecimento de um equilíbrio familiar.
Por um lado os irmãos acabam por ficar um pouco de parte porque a preocupação maior é o filho doente mas depois eles também têm que lidar com uma perda.
Exatamente. Hoje fala-se cada vez mais na importância que temos de dar aos irmãos. Damos uma importância muito grande aos pais, ao drama dos pais, ao drama da criança doente. Mas os irmãos são muito importantes e no luto que a família tem de fazer os irmãos tem de estar incluídos
Quanto tempo de luto está previsto no caso dos irmãos?
Dois dias, mas isto só é aplicável em casos de irmãos que estejam a trabalhar. Se estamos a falar de crianças pequenas não têm nada e no dia seguinte vão para a escola. Ou não vai, não há lei alguma. E pode ser muito bom ir para escola ou uma grande violência.
“Quando a Madalena morreu, eu nem questionei. Sabia que tinha cinco dias e ao fim de cinco dias apresentei-me ao serviço. Acho que é uma violência mas, ao mesmo tempo, não estamos despertos no momento para a violência que estamos a viver”
A alteração que a petição prevê na lei deixa a salvaguarda de que se alguém quiser ir trabalhar ao fim de cinco dias pode ir, correto?
Conheci pessoas que ao fim de 25 anos mantinham o quarto dos filhos exatamente igual ao dia em que a pessoa morreu. E conheço pessoas que, no dia seguinte à morte do filho, mudaram completamente o quarto. Não há um luto certo ou errado. Eu apenas posso dizer qual é o luto com que me identifico mas não posso dizer qual é o melhor. Cada um saberá encontrar dentro de si, há pessoas com fé e outras que não. O que sabemos é que estamos a lutar pelos 20 dias e, obviamente, haverá uma discussão na sociedade se a petição for em frente. Nós contemplamos sempre a hipótese de quem quiser ir trabalhar antes poder ir, porque há pessoas que no dia seguinte querem trabalhar, porque querem seguir em frente e ocupar a cabeça. Nos casos em que a situação de doença é mais prolongada, quando a criança morre já é um fim que estava esperado e a partir de certa altura podem preparar-se para uma inevitabilidade. Podem começar a fazer as despedidas mas há sempre uma esperança até ao fim. Agora há casos de acidentes em que a pessoa fica confrontada com um vazio e nem sabem o que fazer em cinco dias.
Pode partilhar algumas das diferentes formas de luto e de formas como as empresas empregadoras lidaram com a situação?
Não tenho episódios para contar. Tudo depende da humanidade das chefias, da cultura da empresa. Admito que hoje em dia seja muito diferente do que era há 20 anos, quando a minha filha Madalena morreu. Quando a Madalena morreu, eu nem questionei. Sabia que tinha cinco dias e ao fim de cinco dias apresentei-me ao serviço. Se tivesse pedido mais tempo, tinham-me dado? Talvez. Eu acho que é uma violência mas, ao mesmo tempo, não estamos despertos no momento para a violência que estamos a viver. Quando estamos a pensar nisto é que percebemos. Tenho pessoas com alguma relevância na sociedade que quiseram ser as primeiras signatárias desta petição e que ficaram espantadas com a violência da legislação. É algo em que nem pensamos. Admito que cada chefia é uma chefia e que cada empresa é uma empresa: há-de haver empresas que dizem aos trabalhadores para ir para casa mais uns dias sem se preocuparem e há-de haver outras que são mais legalistas.
Referia ainda agora que quando a sua filha Madalena morreu, ao quinto dia ainda nem tinha noção se precisava ou não de mais tempo para processar. Essa falta de noção do que se passa naquele momento não é também prova de que realmente são necessários mais que cinco dias?
O meu caso durou ainda nove meses. A sensação que tenho é que fui trabalhar automaticamente, que não me questionei. E com isto não estou a dizer que tinha um sentido de responsabilidade muito grande, porque eu tinha uma posição profissional que me permitia dizer ao meu chefe que não ia e punha baixa. Ninguém levaria a mal. Eu acho que fui por automatismo. Com aquilo que sei hoje e se recuasse 20 anos, talvez tivesse olhado para os meus outros dois filhos de forma diferente. Talvez tivesse pensado que deveria ter tomado mais atenção porque eles eram pequenos e também tinham tido uma perda.
Hoje em dia há mais consciência de que temos de trabalhar mais com os irmãos, com os que ficam, olhar mais para dentro e não ser apenas o cumprimento do estrito na legislação. Há casos em que há desestruturação brutal da família. No meu caso: eu vivia num meio urbano, nunca tive de mudar de cidade, tinha uma rede social, familiar e financeira forte. A minha mulher não trabalhava. Eu tinha uma rede social muito substancial. Agora, as casas da Acreditar estão cheia de famílias que ficam um ano fora de casa. Essas pessoas são vítimas de uma desestruturação brutal, com perdas de rendimento, de afetos, de estabilidade familiar; com perda de contacto com um irmão e com um pai que normalmente tem de ficar longe para trabalhar. Os irmãos são entregues a avós ou tios. Isso tem de ser remendado e a ferida, após a morte, tem de ser bem tratada. Hoje há uma consciência maior do que há 20 anos e que eu, seguramente, não tinha.
Que idade tinham os irmãos da Madalena?
Tinham 14 e 12 anos. A Madalena era a mais nova, tinha sete anos quando morreu.
“A morte é um tema que não existe, é algo de que ninguém quer falar mas existe e é inevitável”
Quais as vossas expectativas em relação à petição?
As expectativas é que se fale neste assunto. Gostava muito de dizer que a petição vai ser um sucesso e que o Governo e a Assembleia vão legislar e dar os 20 dias, mas acho que é também muito importante que se fale. A morte é um tema que não existe, é algo de que ninguém quer falar mas existe e é inevitável. E a morte, em alguns casos, não é um fim lógico e expectável de uma vida. Às vezes é um assunto brutal e tem de ser falado. Tem de se olhar para estes pais e para estes irmãos e tenho esperança que a petição dê pelo menos origem a uma conversa em sociedade, que se fale e que seja um oportunidade para a Assembleia e o Governo reverem a legislação e discutirem. Perceber se faz sentido ou não. Só quando somos confrontados com a morte de um filho percebemos que temos direito a cinco dias, o mesmo que temos direito com um sogro. Há uma desproporção, até porque um sogro à partida morre mais velho. É como um pai ou uma mãe, que pode morrer cedo, mas morre antes dos filhos. Os filhos nunca devem morrer antes dos pais, esta é a grande violência porque há uma alteração da sequência normal da vida. Nós temos de morrer antes dos nossos filhos.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso