Nasci em casa, tal como os meus antepassados em várias gerações ali á beira da ribeira da Asseca. Conheço o Pego do Inferno de vivência diária de toda a vida e do que ouvi de memórias dos meus vizinhos e familiares de há quase dois séculos.
Nos últimos anos ando por ali várias vezes ao dia, gerindo terrenos nas margens das ribeiras, por isso sou guia turístico em diálogo com gente de todo o lado. Já vi ali viaturas desde a Suécia até á Argélia, mas com dominante de Espanha, França e Alemanha.
Nos dias de verão e fins-de-semana já ali contei 130 viaturas estacionadas em caminhos, terrenos e hortas. E em cada dia se renovam 4 a 5 vezes os visitantes, com estadias médias de 1-2 horas. São cerca de 1000 pessoas dia no verão e umas 50 a 60 nos piores dias de inverno.
Não há no Algarve nenhum outro monumento natural tão visitado. E no concelho de Tavira este local é seguramente mais procurado do que qualquer museu ou exposição.
A ribeira da Asseca, corre pelo Barrocal do sul de S. Brás de Alportel até ao Pego do Inferno, onde aflui á Ribeira do Alportel, proveniente esta da aba sul da serra do Caldeirão desde o Barranco do Velho. Depois seguem juntas para a Ria Formosa, atravessando a cidade de Tavira ao meio, em sereno curso entre os pomares e canaviais da Asseca, seja com o nome de Séqua ou de Gilão.
O Pego do Inferno é a ultima cascata e a maior nos saltos da ribeira nos seus últimos três quilómetros. Ali do alto de 20 metros, quando a ribeira corre, temos um soberbo panorama do rochedo calcário para o grande pego, que nunca secou e onde nos anos 35 e 45 do século passado se fez um caminho em caracol para os carros de bois irem buscar água que escasseava lá no fundo.
Há quase 20 anos o Municipio de Tavira fez ali um parque de estacionamento, um parque de merendas em terrenos que comprou e criou escadas, passadiços panorâmicos e uma ponte, com o acordo escrito e assinado pelos proprietários dos terrenos marginais.
Em julho de 2012, por desleixo na coordenação do combate ao famoso fogo da Catraia que ali chegou, infelizmente quase tudo ardeu.
Durante cinco anos nada mais aconteceu, a não ser serem retiradas as placas direcionais das estradas que conduzem ao Pego. Mas quem retirou as placas esqueceu-se de apagar o Pego dos mapas eletrónicos dos telemóveis de toda agente. Puro lapso, estamos em crer.
Em 2017 surgiu uma placa a anunciar obras de renaturalização, mas o que se viu foi apenas o desmantelar da ponte cuja estrutura estava intacta, apenas o revestimento tinha ardido. Era mais barato reparar a ponte do que removê-la, mas foi essa a decisão. E nada mais aconteceu.
O mesmo movimento de pessoas, carros e telemóveis com aplicações e eu e os vizinhos a informar os visitantes a todo o instante. Mas dia 22 de junho ao final da tarde novo incêndio, ardendo o que tinha sobrado do fogo de 2012. Aparentemente um piquenique ou uns cigarros, ou até pior maldade, talvez.
E agora?
Poderia ficar no silêncio, mas acho que isso não se adequa às circunstâncias. Cruzar os braços e esperar que os canaviais cresçam, o que é rápido, não pode ser.
Entristece-me o abandono a que o Pego foi votado. Cerca de 100 mil visitantes ano, merecem muito respeito. Sei que alguns leitores ficam admirados com este número e até o colocam em causa, mas a realidade é a que digo e sei inquestionavelmente.
As pessoas merecem um acesso digno, com segurança, com informação organizada, com limpeza e vigilância do local, com um quiosque com bebidas frescas, com bancos de descanso e com respeito pela natureza. Isto é possível e já foi assim. E digo mais, sei que cada visitante até está disposto a contribuir monetariamente para a qualidade do local, não tenho duvida nenhuma. O que digo é que é possível ter um espaço digno, sem despesa pública permanente, bem pelo contrário, pode dar receita com saldo positivo, incluindo um guia-vigilante presente.
Isto num monumento geológico e hídrico cársico, associado aos açudes romanos, aos moinhos da Rocha (três azenhas de moenda de cereais), na falha rochosa que separa o barrocal da serra, que separa freguesias de Tavira e que se centra no reguengo real que abastecia a cidade há milénios. Como pode ser rica e culta esta visita.
Não deixemos o Pego do Inferno ao abandono. Saibamos ter orgulho no que a natureza ali fez e respeitemos tantos milhares de visitantes.
Entre o desleixo a coragem só há um caminho certo.
(CM)