Este texto é o primeiro de uma série. Não me pergunte o leitor quantos textos terá a série: não consigo prever. Só sei que terá o título “O humor é coisa séria”. E já não é pouco, porque me condiciona bastante na escolha dos temas. Ou não condiciona nada: não teremos humor em todo o lado?
O próprio título da série tem humor: a graça está no jogo entre o sério e o humor. Está na contradição, ao menos aparente, dos dois termos: poderá haver humor em algo sério? Pelos vistos e pelo que veremos proximamente, sim. E não me refiro ao mau humor – que também é humor, não? Não: refiro-me ao humor-humor, aquele que nos faz rir. Ou apenas sorrir. Procurarei conseguir um tratamento sério do humor. Procurarei também que seja um sério tratamento.
Não me parece boa ideia começar pelo início mais expectável: a resposta à questão o que é o humor? Entre outras razões, porque se adivinha ser uma tarefa arriscadamente sem humor. Prefiro plagiar a resposta de Santo Agostinho à pergunta o que é o tempo? “Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”. Reconheçamos que é um modo inteligente, e certamente humorístico, de iludir o problema. Até porque toda a gente sabe o que isso (o tempo e o humor) é – não sabe? (LOL).
…E o conceito tem tantos e tão diversos significados! Em estar com um péssimo humor e uma revista com muito humor, a palavra humor não tem o mesmo significado. A Antiguidade Clássica relacionava os humores com o caráter da pessoa. Humor é cada um dos líquidos de um organismo vivo; quatro, no total: sangue, bílis amarela, fleuma ou pituíta e bílis negra ou atrabílis. A personalidade humana é configurada pelos vários humores e um corpo saudável é aquele em que se verifica o equilíbrio destes humores; a doença resulta do desequilíbrio de algum deles.
…E, depois, há a distinção entre humor, riso, comicidade, sátira, sarcasmo… E a difícil definição de fronteiras entre os tipos de humor. O melhor, pressinto eu, é recorrer novamente ao tempo de Santo Agostinho.
Tenho a perceção de que o humor atravessa todas as formas do risível. Talvez seja tudo aquilo que faz rir – caracterizando uma atitude contraposta a uma atitude séria ou trágica. Atitude e não situação; porque é possível rirmos de tudo, é possível um tratamento humorístico de situações ou manifestações graves, desesperadas ou macabras, até da morte – é assim que o Dicionário Houaiss define o humor negro.
Antonio Prata, escritor, cronista e roteirista brasileiro, esclarece: Humor é a surpresa e a irrupção do inesperado. E lembra-me uma imagem que vi por aí, nas cibernuvens, e que um professor do ensino primário e amante das matemáticas colocou num teste: o conjunto era formado por um cão, a que deu o nome de “π” (isso mesmo! O pi matemático), a expressão “Au Au!” dentro de um balão de banda desenhada, e a pergunta o que é que o cachorro π faz?. Resposta de um aluno: π lates.
Num conjunto de nove significados diferentes, o Dicionário Houaiss caracteriza o cómico como o que “provoca riso pelo grotesco do seu comportamento, das suas ideias, da sua aparência, etc.”. De certo modo, é o espetáculo do ridículo, do erróneo, do incongruente – com objetivos de censurar e simultaneamente aconselhar o indivíduo ou a sociedade. Nas conhecidas comédias de Aristófanes (447-385 a. C.), por exemplo, aparecem figuras da democracia ateniense, chamadas pelos seus próprios nomes. A sua peça As Nuvens, talvez a mais popular, é dirigida contra os sofistas; nela, o filósofo Sócrates (469-399 a. C.) é comparado com aqueles mestres da retórica da altura, caracterizado como alguém… que anda nas nuvens, acusado de influência nefasta sobre a sociedade.
Transcrevo um pequeno diálogo, entre um discípulo de Sócrates e Estrepsíades:
Disc. – Ainda há coisa de pouco tempo, um lagarto pintado lhe arrebatou um pensamento de arromba.
Estr. – Como foi isso? Conta lá…
Disc.- Uma noite, estando ele a estudar a órbita da lua e as suas revoluções, assim, com o nariz espetado no ar e de boca aberta, eis que de repente um lagarto pintado cagou lá de cima do telhado.
Estr. – Que gozo, um lagarto pintado cagar em cima de Sócrates!
Garante quem tem fama de saber: a capacidade de rir e fazer rir é uma das formas mais eficazes para despertar o interesse de uma mulher. E de um homem? Que razões nos levam a apreciar tanto o humor? Porque é um antídoto contra os problemas e as desgraças do quotidiano? Permite-nos viver mais e melhor? Ultrapassar mais facilmente as nossas incongruências (entre o que dizemos e o que fazemos, por exemplo)? Tenho um amigo que se converteu ao Islão. Ao vê-lo comer presunto com muito agrado, quis meter-me com ele: “ó rapaz, então mas Alá não proíbe comer presunto?”. E ele, muito à vontade: “Alá proíbe?! Nããão, pá! Desde que o presunto seja bom…”
[Este texto será também publicado em http://omeubau.net/humor]