Começo com uma pergunta: caro leitor, tem a certeza de que, quando acha que se movimenta, se movimenta mesmo? Não se ria da minha pergunta, porque não é caso de humor, a não ser humor sério. Houve mais do que um filósofo a provar, ou a tentar provar, que o movimento é apenas aparente, que o movimento na realidade não existe. Um destes engraçadinhos (ou serão tolos?) nasceu em Eleia, na atual Itália, no século V a.C., e é um dos filósofos com piada. Mesmo o nome é engraçado: Zenão. Além de outras maluqueiras de Zenão de Eleia (não confundir com um outro, Zenão de Cítio, cento e tal anos mais novo), até a sua morte foi uma morte cheia de humor.
Como aconteceu com outros filósofos e ao contrário de alguns outros, o filósofo de Eleia não ia à bola com um ditador a que a sua pátria estava submetida. Por isso, participou em (e até terá planificado) uma conjura para lhe tirar o poder. A coisa não correu bem, a conspiração foi descoberta; preso e torturado para revelar os segredos e os participantes da conspiração, riu-se dos carrascos, dizendo-lhes:
se vocês conseguissem mandar no meu corpo como eu mando na minha língua…
Longe de lha evitar, esta gracinha reforçou a tortura, a tal ponto que Zenão gritou que diria a verdade; tendo acrescentado que revelaria tudo, na condição de dizer os nomes dos implicados ao ouvido do tirano, para que apenas ele ouvisse. Quando o tirano lhe aproximou a orelha, Zenão cravou-lhe os dentes e arrancou-lha num instante (moral da estória: colocar a orelha em qualquer sítio pode ser perigoso; há que analisar sempre onde a podemos encostar sem risco😉). É fácil adivinhar que Zenão não saiu dali vivo.
Dizem outros relatos que cortou a língua com os dentes e cuspiu-a na cara do tirano. Há ainda outra versão: quando lhe perguntaram quem tinham sido os seus cúmplices na revolta, ele listou, um por um, os nomes dos políticos mais chegados ao tirano, que foram presos.
Mais do que estas estórias, o que tornou Zenão popular foi a estória de Aquiles e a tartaruga. Um dos intentos do filósofo foi a tal demonstração de que o movimento na realidade não existe. Isso mesmo: que o leitor e eu não nos movemos, quando parece que nos movemos. Para o demonstrar, propõe uma estória divertida:
Imaginemos Aquiles, o atleta mais veloz da Grécia, a disputar uma corrida com uma tartaruga, o mais lento animal do mundo. Para compensar a menor velocidade da tartaruga, Aquiles é colocado um pouco atrás dela; dá-se o sinal de partida e, ao contrário do que parece, o veloz atleta jamais conseguirá alcançar a tartaruga. O leitor torce o nariz à ideia? Então pense comigo (ou antes, com Zenão): no momento da partida, Aquiles está no ponto A e a tartaruga, no ponto B; o atleta corre, alcança o ponto B, mas, quando lá chega, a tartaruga (que também anda) já lá não estará, estará já em C; quando Aquiles chegar a C, a tartaruga avançou um pouco mais, estará em D… e assim sucessivamente, sem que Aquiles alguma vez consiga alcançar a sua adversária.
O escritor espanhol Rafael Sánchez Ferlosio (1927) dedica, à corrida, a gracinha de uns versos, que eu traduzo assim, um tanto livremente:
A caminho de Eleia segue uma tartaruga,
Com vinte e cinco séculos no lombo.
Chamo-me Zenão;
Se virdes vir Aquiles,
Ele que apresse o passo.
Repito: o que Zenão pretendia era provar que o movimento é aparente, que na realidade não existe, que nós vemos Aquiles alcançar e até ultrapassar a tartaruga, mas na realidade isso não acontece. Na realidade, ou melhor, logicamente: porque, é claro, na realidade não é assim. Contudo, os argumentos de Zenão levam-nos a pensar que temos suposições firmes, seguras (designadamente, as suposições sobre o espaço, sobre o movimento), que conduzem a contradições e impossibilidades lógicas.
Dito de outro modo: engana-se quem pense que estas teorias não passam de maluqueiras de Zenão; não, os paradoxos do nosso filósofo viriam a dar cabo do juízo a muitas cabeças pensantes (matemáticos incluídos), como as dos grandes Leibniz (nascido no século XVII) e Kant (nascido no século XVIII): é que estes paradoxos, se não se lhes encontrar solução, levam ao descrédito certas formas de pensar, as tais suposições firmes a que me referi, acima. Ora isto, por mais humor que tenha, é um caso sério.
Conta-se que…
…numa ocasião, um dos ouvintes dos argumentos de Zenão não parava de andar para a frente e para trás enquanto ele falava; esse movimento incessante irritou o filósofo, que o mandou sossegar: fica quieto! Deixa de andar aí de um lado para o outro!; adivinha-se a resposta do engraçadinho: então… se não há movimento, porque é que me mandas parar?
Diz-se por aí que…
…um professor universitário de Coimbra pretendeu ter encontrado solução definitiva para o paradoxo de Aquiles e deste modo lançar de vez para o lixo as teorias de Zenão. Aquiles não consegue alcançar a tartaruga? – perguntou o professor. – Substituam a tartaruga por uma gaja boa, e veremos se a alcança ou não!…
Além de Aquiles e a tartaruga, Zenão apresentou outros argumentos/paradoxos contra o movimento. Termino enunciando, sem explicação, o da flecha voando (se o leitor estiver interessado em aprofundar este tema, facilmente encontra documentação, até na Internet, perguntando ao Dr. Google). Esquematicamente:
imaginemos um arqueiro que dispara uma flecha: todos os presentes vê-la-ão a afastar-se, voando. Para perceber que isto que vemos é uma ilusão, basta pensarmos um pouco. A flecha não se pode mover do sítio onde está. Como assim?!, perguntaremos. Responde Zenão: a flecha não pode mover-se do sítio onde está, porque, se está lá, está (em repouso) e então não se move. Mas também não pode mover-se do sítio onde não está, visto que não está lá. Logo, a flecha permanece imóvel em cada instante do voo (aparente); se permanece quieta em cada instante do voo, quieta há de ficar aí para sempre.
Este argumento também foi parodiado.
Conta-se que um discípulo de Zenão, tendo deslocado um ombro, procurou um médico para resolver o problema. Está o leitor a ver a gracinha do médico, não está? Isso mesmo: desculpa, mas não posso fazer nada. De facto, parece que o teu ombro se deslocou. Mas, como ensinou o teu mestre, o ombro na realidade não se pode ter deslocado nem do sítio onde estava nem de onde não estava: logo, o ombro não está deslocado.
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