Quando se pergunta o que é a filosofia, é fácil que apareça um engraçadinho a responder “é a disciplina com a qual ou sem a qual se fica tal e qual”. Esta resposta, na verdade, não deixa de ser engraçada, ou talvez engraçadinha. E também fundamentada: assim de repente, vejo duas razões para essa “definição”. A primeira é que há vários filósofos (e professores de filosofia) que a gente lê ou ouve… e no fim fica como estava antes, sem ter percebido peva. Obscuros.
Esta obscuridade é velhinha, quem sabe se não tão velhinha como a filosofia. Heraclito é um exemplo. Este filósofo de Éfeso viveu, mais coisa menos coisa, entre 535 a.C. e 475 a.C. e talvez seja o autor da famosa afirmação de que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio; é assim que ele sintetiza a sua ideia do “fluxo” de todas as coisas. Até aqui entende-se, o que não acontece com outros dos seus raciocínios.
Heraclito tem a alcunha de o obscuro. Mas pensa que essa alcunha o perturbou? Nada disso! Ele era assim intencionalmente. E porquê? Porque a natureza (a realidade), dizia ele, também gosta de se esconder. Tal como o oráculo de Delfos, que não fala nem se cala, apenas nos lança sinais. Dá vontade de rir, não dá?
Conta-se que, um dia, deram a ler a Sócrates um escrito de Heraclito, perguntando-lhe o que achava. E o filósofo do só sei que nada sei confessou que o que tinha entendido era muito bom; e que o que não tinha entendido também deveria ser bom, mas era necessário um nadador de águas profundas para lá chegar.
Entre os filósofos mais próximos de nós, Derrida é um belo exemplar dos pensadores cujo pensamento não é facilmente assimilável pelas pessoas habituadas à expressão normal do pensamento. Para Jacques Derrida (1930-2004), o que os filósofos tinham feito eram elaborados jogos de palavras; uns joguinhos que eles jogam connosco, como se joga ao gato e ao rato. Bem… isto não deixa de ser um jogo de palavras, não acha? Assim não vale, Jacques!
E o que é que Jacques propõe para substituir esses jogos? Isto: que a filosofia seja um trabalho de desmontagem (de desconstrução) de textos; que revele, através da leitura e análise destes, o que eles têm verdadeiramente no seu ventre: pressupostos ideológicos, políticos, metafísicos – e os vire contra eles (agora já sabe de onde vem a muitos intelectuais da nossa praça a inspiração para as desconstruções que muitas vezes fazem, ou prometem fazer).
Admito que esta desconstrução é urgente, em muitas situações do quotidiano: quantos discursos ocos se não escondem atrás de linguagem complexa feita de eufemismos, argumentos circulares, expressões e frases feitas, metáforas…?! Quantas ideias falsas se não disfarçam em gíria impenetrável, em circunvoluções estonteantes?! (Juro que não estou a fazer jogo de palavras). Cá por mim, são muitos e muitas. Tantos e tantas que, por isto, até compreendo as quantas e os quantos (LOL) querem mudanças na linguagem para exprimir as diferenças de género. O fenómeno está de tal modo espalhado que até o “meu” presidente da Câmara abre os seus discursos com “sejam bem vindas e bem vindos todas e todos!”
O mínimo que se pode dizer das obras de Derrida é que não são nada fáceis. E ele ainda gozava com isso, desculpando-se: “Nunca cedi à tentação de ser difícil por ser difícil”. O filósofo malaguenho Javier Muguerza (n. 1936) comentou que já não bastava saber francês para entender alguns pensadores franceses: para entender o psicanalista Lacan (1901 – 1981), era preciso saber ainda lacanês. E ironizou: “Je ne parle pas lacanois”. Parafraseando Muguerza, “Je ne parle pas derridanois”.
Alguns filósofos têm a mania de inventar palavras estranhas. Às vezes, nem eles sabem o que elas querem dizer. Derrida inventou différance, traduzida para português por diferança (sem erro tipográfico) ou por diferência. Primeira estranheza: différance pronuncia-se como différence (diferença) – mais um jogo de palavras de Derrida. As duas não se distinguem quando são ouvidas, apenas quando são lidas. E no significado? qual é a diferença entre diferença e diferança? Resposta dos discípulos de Jacques: não é fácil definir différance. Resposta do mestre: à letra, différance não é nem uma palavra nem um conceito; a diferença entre diferença e diferença “escreve-se ou lê-se, mas não se entende”. Estamos conversados!
Os jogos de palavras, os trocadilhos, os duplos sentidos de Derrida fizeram as delícias dos dadaístas – os escritores, poetas, artistas plásticos, que realçavam o non-sense ou a falta de sentido que a linguagem pode ter (consta que mesmo teriam escolhido o nome dadaísmo abrindo ao acaso uma página de um dicionário). Daí que tenha havido quem se referisse a Derrida como Derri-Dadá.
O filósofo francês Mikel Dufrenne compara a différance ao Deus dos místicos: são conceitos que escapam a todas as categorias do conhecimento. Mas há quem seja mais demolidor, como Martin Cohen: Derrida, apesar da sua reputação internacional, na realidade “não é um grande filósofo. De facto, é um filósofo péssimo”.
Concluo com uma estória, que já ouvi contada a propósito de vários filósofos:
um filósofo dita um texto à secretária; no fim pergunta: “o que lhe parece? Terei sido suficientemente claro?” Ante uma resposta afirmativa dela, ele prossegue: “Então, vamos complicar mais isso!”
…e uma extra: no final de uma conferência, um filósofo avisa: “se me entenderam bem é sinal de que me expliquei mal”.
Nb final: Não me esqueci de que falta o segundo motivo que justifica a tal definição engraçadinha de que falava no início. Mas, como este texto já vai tão longo, deixo-o para o próximo.
[Este texto será também publicado em http://omeubau.net/humor-filosofia]