Não há ainda consenso quanto ao papel de Alexandr Dugin, a figura “marginal” e controversa que tem sido descrita como “o cérebro de Putin” ou o “Rasputin de Putin” – reforçando o esoterismo do filósofo e teórico de ideologia política. A ligação entre Dugin e Putin está longe de ser deslindada. Alguns estudiosos, como o cientista político finlandês Jussi Backman, contestaram fortemente estas alegações, apontando que não há evidências de proximidade entre os dois entusiastas do eurasianismo e da geopolítica multipolar. Putin nunca mencionou Dugin em público, mas o filósofo russo chegou a encontrar-se com Steve Bannon, assessor de Donald Trump.
Nesta entrevista ao Expresso, Jussi Backman explica, no entanto, por que é importante estudar a teoria política e a ideologia deste homem tão conhecido no Ocidente e visto como “marginal” na Rússia. O investigador da Universidade de Helsínquia faz uma análise detalhada às influências de Alexandr Dugin e à marca que este deixa no mundo.
Estudou a obra e a literatura produzida por Alexandr Dugin e chegou à conclusão de que as ideias do “filósofo” não são assim tão simples e que não são apenas orientadas para a política russa. Dugin tem uma abordagem mais abrangente? De que forma?
Sim, sim. Sou também filósofo, por isso o meu interesse em Dugin era inicialmente filosófico. Acredito que a filosofia de Dugin está intrinsecamente ligada à política da Rússia. A filosofia dele é sintomática de como a elite política russa pensa. Não estou certo de que Dugin tenha assim tanta influência na Rússia, nem de que tenha influência direta em Vladimir Putin. No entanto, ele pensa de uma forma semelhante à forma de pensar dos líderes russos: Putin e Lavrov. Eles fizeram declarações recentes que se assemelham aos pensamentos de Dugin, mas não se referem a Dugin. Não sei se conhecem diretamente… Muitas figuras da elite política russa pensam da mesma forma, e é por isso que Dugin suscita tanto interesse.
Mas, seguindo a hipótese de que Putin e Dugin se conhecem, de que pelo menos em tempos mantiveram contacto, acredita que seria interessante para o Kremlin esconder essa ligação?
Claro que é possível. Mas não é claro que se tenham encontrado. Não há evidências de que Dugin e Putin se tenham encontrado, nem de que Putin tenha mencionado esse nome. Dugin também já disse, numa entrevista, que nunca esteve com Vladimir Putin. Por isso, não é claro… É possível que mantenham contacto, mas não o tornam público.
Quem defendeu primeiro estas ideias comuns: Putin ou Dugin?
Muitas das ideias de Dugin não são originalmente suas. Radicam exatamente na História da Rússia. Por exemplo, o eurasianismo, a ideia de uma civilização eurasiática e de que a Rússia dominaria a Eurásia, é uma teoria antiga. Começou nos anos 1920. Dugin simplesmente reciclou ideias antigas. O conservadorismo político também tem por base os conservadores alemãos dos anos 1920. As ideias não são assim tão originais. É possível que Dugin não tenha tido uma influência direta no Presidente russo, mas as ideias têm origens comuns. Há referências comuns. Sabemos que Putin leu o trabalho de Ivan Ilyin, que foi outro filósofo russo da extrema-direita, um fascista que marcou as décadas de 1920 e 1930. Têm ideias semelhantes que provêm das mesmas fontes. Não é, no entanto, impossível que Putin tenha ouvido Dugin presencialmente…
Quais são as maiores fontes de inspiração de Dugin? E quem é que Dugin inspira também?
Fora da Rússia, grande parte do trabalho de Dugin foi traduzido para as línguas europeias: inglês, francês, alemão e português. Ele tem conquistado notoriedade nos ‘media’ europeus e ocidentais. Há alguns grupos na Europa ocidental que estão interessados em Dugin. Também nos Estados Unidos da América alguns grupos da direita… Por exemplo, Steve Bannon, que era conselheiro de Trump, tinha muito interesse em Dugin. Alguns movimentos conservadores da extrema-direita do Ocidente estão interessados nele.
E as duas principais fontes de inspiração de Dugin são, em primeiro lugar, o eurasianismo russo, e, em segundo lugar, o movimento revolucionário conservador alemão, da década de 1920. Antes de os nazis estabelecerem a República de Weimar, um certo grupo de filósofos conservadores da direita iniciaram a revolução conservadora. Carl Schmitt foi um deles. Essas são algumas das suas inspirações.
Está a par da teoria que coloca Dugin como um contacto próximo de Putin, de Steve Bannon e que também refere que Olavo de Carvalho, considerado, no Brasil, o “ideólogo do bolsonarismo” se inspirou no mesmo tradicionalismo? O que pensa desta teoria que defende que vários políticos mundiais da direita radical seguem a mesma filosofia de Dugin?
Sabemos que Dugin e Bannon se conheceram, mantiveram contacto pessoalmente. Mas não estou certo de que Dugin tenha tido tamanha influência em Bannon. Gostavam das ideias um do outro, mas estes movimentos da direita populista, que não são necessariamente neonazis no seu sentido mais mais tradicional, não são novos na Europa nem nos EUA. São movimentos tradicionais, conservadores e nacionalistas de direita que nem sempre são neofascistas.
O contacto mais importante de Dugin no Ocidente é um filósofo francês chamado Alain de Benoist, que é conhecido como a maior figura do movimento da direita radical Nouvelle Droite [fundado no final dos anos 1960]. Benoist acredita que grupos culturais diferentes devem manter-se separados. Continuaria a haver uma sociedade multicultural, mas com identidades culturais mais isoladas. É uma espécie de relativismo cultural, que defende que cada cultura tem as suas próprias normas, padrões e formas de viver, pelo que não devem ser ‘misturados’, mas mantidos à distância. Devem respeitar-se, mas permanecer separados. É uma orientação seguida pela nova direita radical europeia. É um tipo de pensamento muito influente na cena internacional, e Dugin é um dos grandes nomes entre estes conservadores radicais.
O encontro de Steve Bannon e Dugin foi de conhecimento público. Qual dos dois o divulgou?
Há um livro sobre Steve Bannon [“War for Eternity: The Return of Traditionalism and the Rise of the Populist Right”] que também se foca em Dugin. Esse livro menciona a relação entre os dois e descreve a reunião que tiveram em Washington. Há provas de que se encontraram e de que conversaram por muitas horas. Foi um encontro resguardado. Dugin nunca esteve pessoalmente envolvido na política norte-americana, mas eles têm este contacto pessoal.
Mas não o intriga o facto de a Rússia ter tido influência na eleição de Donald Trump, em 2016?
Sim. Claro que sim. É um facto conhecido. Não ficou claro que tipo de influência… Houve muitos rumores de que haveria material recolhido pelos serviços secretos que incriminavam Donald Trump, mas são rumores… Não é claro o quanto os russos conseguiram influenciar a política e as decisões norte-americanas.
Os pensamentos de Dugin podem ser enquadrados na área da Filosofia? Porquê?
Acima de tudo, Dugin é um filósofo ou um teórico político. É uma figura marginal, sem posição académica na Rússia, desde 2014. Já não tem um cargo académico específico, é um teórico marginal. Ele nunca chegou a ser um filósofo académico. Foi sempre um pensador de política, um ativista político. Mas tenho de dizer que ele é um filósofo, e é muito lido…
É influente…
Não academicamente. A maior parte das pessoas na Rússia não o leva propriamente a sério. É uma figura esotérica, e, nos círculos académicos, não é levado a sério. Mas há muitas pessoas no Ocidente que estão interessadas em Dugin, incluindo eu. Não sou simpatizante das suas ideias políticas, mas considero alguns trabalhos interessantes.
Porquê? O que é que considera interessante no trabalho de Alexandr Dugin?
Digamos que ele tem uma forma muito original de combinar certas ideias que não são assim tão originais, é uma confluência interessante de ideias antigas. É uma síntese interessante, com significado político. É um novo tipo de ideologia política da direita.
Acredita que as verdadeiras intenções de Dugin são influenciar os poderes mundiais? Há indícios disso?
Ele adoraria conseguir isso, mas não estou certo de que tenha muita influência direta na política. A política tem base em ideias filosóficas e naquilo que as pessoas pensam. Na Filosofia, podemos influenciar muito de forma indireta. Os filósofos são influenciadores políticos indiretos, porque as ideias filosóficas podem ter muita influência indireta na política. Os livros de Dugin influenciam, de alguma forma, a maneira de pensar das pessoas. Têm novos conceitos e novas formas de olhar para as coisas. É bastante possível que Dugin venha a ter muita influência a longo prazo, mas estou mais cético quanto à sua capacidade de influenciar políticos mundiais.
Não considera estranho que um filósofo marginal e pouco conhecido se torne professor na Academia Militar do Estado-Maior Geral das Forças Armadas da Rússia?
Ele esteve ligado ao Departamento de Sociologia. Ele era o chefe da ala mais conservadora em Moscovo, entre 2008 e 2014. Foi o único verdadeiro cargo académico que ele assumiu, mas fez palestras em academias militares. O livro que escreveu em 1997, “Fundamentos da Geopolítica: O Futuro Geopolítico da Rússia”, foi usado como manual na academia militar de Moscovo, onde os generais eram treinados. Fazia parte do treino militar. Este livro, sobre a geopolítica, teve muita influência, e foca-se sobretudo na ideia da Rússia enquanto império. Este livro indica que regiões devem ser adicionadas ao império russo ou à esfera de influência russa. Na obra, Ucrânia, mas também a Finlândia, está incluída nas ambições imperialistas da Rússia. O livro apresenta uma estratégia ou um modelo geopolítico.
Os discursos de Putin, durante esta guerra, por exemplo, apresentam ‘colagens’ em relação às ideias ou expressões de Dugin?
Sim. Aliás, eu acabei de olhar para uma entrevista que Putin deu, em 2019, ao “Financial Times”, e ele dizia que o liberalismo ocidental já está a esgotar o seu propósito e a chegar ao fim do seu prazo. É bastante crítico, dizendo que o liberalismo é uma coisa do Ocidente, e que a Rússia não é liberal. Ele diz que o liberalismo já é uma coisa do passado e que o Ocidente não vai conseguir prolongá-lo. Esta ‘agenda’ antiliberal lembra bastante os pensamentos de Dugin.
Outra coisa de que Putin fala, nesta entrevista, e que tem sido repetida, é a ideia de um mundo multipolar. Depois da Guerra Fria, o mundo tornou-se unipolar, na medida em que tem havido um domínio dos EUA e da Europa Ocidental (liderada pela Alemanha), isto é, a NATO tem sido hegemónica e tem sido o único pólo na geopolítica. Mas ele diz que o mundo tem de se tornar multipolar. Deve haver outros pólos de influência bastante diferentes do pólo norte-americano, com ideologias diferentes, politicamente, constitucionalmente… Putin defende que isso tornará o mundo mais diverso, eclético e igual. A Rússia tem de ser um pólo independente, tal como a China.
Ambas as ideias são ideias de Dugin. Colam-se às dos ideólogos do Eurasianismo. A ideia de união eurasiática – com o Cazaquistão e a Bielorrússia -, que está a ser desenvolvida há já muito tempo, que remonta há 20 anos, mas não tem sido muito bem-sucedida, também é comum. Talvez provenha de Dugin, talvez tenha origem em algum outro lugar, mas estes elementos antiliberais, de um mundo multipolar, e de Eurasianismo são comuns.
O fim da Guerra Fria também?
Sim. Depois de a União Soviética colapsar, a Rússia sentiu-se perdida e confusa, ideologicamente falando. A Rússia ficou órfã de ideologia e sem saber o seu lugar. Agora, Putin tem claramente uma ideia, e essa ideia é partilhada pelo seu círculo e pela igreja, que parece apoiar muito este projeto de uma civilização russa e ortodoxa. A ideologia de Putin é muito próxima e assemelha-se muito às visões de Dugin.
Encara isso como uma coincidência?
Sim, pode ser. Não é uma coincidência, mas estas são as ideias naturais… Depois do comunismo, a Rússia teve de olhar para ideias mais antigas, ideias que já foram fortes no passado antes do comunismo. Quando olhamos para a política russa dos anos 1920, vigorava este Eurasianismo e também várias formas de fascismo russo, bem como as ideias do conservadorismo alemão. De certa forma, estas ideias surgem naturalmente, porque o liberalismo nunca teve muitos apoiantes ou uma grande adesão por parte dos russos. A elite política russa não é liberal, é antiliberal. Se queremos encontrar ideias que não são nem comunistas nem liberais, temos de olhar para a direita radical. É o desenvolvimento natural para uma parte da sociedade russa, mais envelhecida, que tem ideias antigas. Dugin tem algum papel nisto, não é uma pessoa insignificante ou não influente.
Mas não é o cabecilha…
Não, isso é uma ideia exagerada criada pelos ‘media’ ocidentais. Ele é mais conhecido no Ocidente. Nunca teve um grande destaque académico, e Putin nunca fez referência ao seu nome.
Então por que é que ele deve ser estudado?
As ideias dele espelham como Putin pensa. Nunca saberemos tudo o que Putin pensa, nem conheceremos todos os seus projetos, mas as ideias de Dugin dão-nos alguns indícios do que passa pela cabeça de Putin.
Dugin faz um apelo a uma nova ordem mundial, por isso…
Sim. O pós-Guerra Fria ainda não foi resolvido. Desde o início dos anos 1990, a ordem mundial não tem sido estável, e tem havido este conflito entre o Ocidente e o mundo islâmico, e economicamente entre os EUA e a China. E agora temos um conflito entre o a Rússia e o Ocidente.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL