AMIGOS
Um dia, a História encontrará explicação para a razão pela qual o supremo magistrado da nação decidiu conceder o mais longo período de campanha eleitoral de que há memória no Portugal da terceira república, para os portugueses tentarem encontrar uma solução para a crise política que eclodiu com a demissão apresentada pelo inquilino de S. Bento no passado dia 7 de Novembro. Pensar só no calendário oficial, é uma ficção. A corrida começou de imediato. Serão 124 dias no total até à meta. Um terço de um ano inteiro. Aparenta exagero, desperdício de recursos, abuso da paciência dos eleitores, obrigados a discernir a verdade da mentira, a informação da desinformação, a seriedade da demagogia, o que se torna cada vez mais difícil num cenário de multiplicação de argumentos e contra-argumentos, de ataques e contra-ataques, de acusações e justificações, de mil promessas em lanços à toa nesta lota eleitoral.
Esta parafernália política que ecoa sem parança nos jornais e nas televisões comporta riscos no agravar da conflitualidade entre pessoas. Um dos valores ameaçados, a amizade, merece ser defendido e exaltado a todo o custo. A amicitia, segundo os antigos Romanos, é a afectividade entre dois seres humanos baseada em atenção, afinidade, ajuda, carinho, companheirismo, confiança, lealdade, protecção e experiências vividas.
Não há falsos amigos. Há pessoas falsas e traiçoeiras, que fingem amizade, ponto final. Amigos, é outra coisa
Platão dizia que “a amizade é uma predisposição recíproca que torna dois seres igualmente ciosos da felicidade um do outro”. Mas ser-se amigo de alguém, para lá de tudo aquilo que se partilha, dos interesses que lhes são comuns, é aceitar-se da forma que cada qual é, respeitando o seu pensamento e as suas opções. Não é concordar cega e automaticamente com tudo o que o outro faz. Fazer parte do mesmo clube, partido político ou religião pode ajudar, mas não é garantia de amizade. Esta vai mais além, tem a ver com tolerância e compreensão. Daí que, nestes tempos de radicalismo galopante, é importante que uma disputa eleitoral não faça em cacos uma bela amizade. Há que preservar o espaço de ouvir e ser ouvido, sem imposições.
Uma relação de amizade é uma escolha voluntária, daí ter um sentido diferente da família. Diz quem sabe que, aos 9 meses de idade, já germina o conceito da amizade, e pelos tempos fora os amigos também participam no processo de construção da identidade, das ideais e valores do ser humano.
Dizem os sábios com certificado de ciência que a amizade faz bem à saúde, provoca a libertação de uma coisa chamada ocitocina, um hormónio (moléculas endócrinas mensageiras…) que reduz os níveis de tensão e gera um efeito calmante, muito útil também em alturas de parto. Ter amigos, qualquer que seja o seu género, combate o stress, melhora o bom humor, faz bem ao coração, afasta a depressão e outras doenças, e produz satisfação, prazer e felicidade. Assino por baixo, leigo na matéria. Ter poucos amigos não significa necessariamente solidão. Abundam pessoas rodeadas de multidões e que não passam de uns tristes solitários.
Muitas amizades não são eternas, vítimas das circunstâncias, de afastamentos vários. E a amizade não se energiza sozinha por simples exposição, como um painel fotovoltaico. Carece de ser regada e alimentada de forma constante e consistente sob pena de se ir apagando. Precisa de presença, de diálogo, de sentido de pertença, de conexão. Não é substituível por amizades feissebuque, embora este instrumento permita redescobrir amigos e nostalgias antigas e fazer novos conhecimentos. Não há amigos verdadeiros. Ou são amigos de verdade, ou não são amigos. Um amigo comemora o sucesso do outro, sente-se feliz com as suas conquistas, pacifica, não guarda rancor, dá e recebe perdão com humildade. Um amigo não tem comportamentos tóxicos, nem sentimentos competitivos, não agride verbalmente, nem provoca o seu amigo.
Muitas vezes invocam-se os famigerados “amigos da onça”. Não há falsos amigos. Há pessoas falsas e traiçoeiras, que fingem amizade, ponto final. Amigos, é outra coisa. E, para as coisas serenarem, e terminar esta prosa em beleza poética, nada como chamar a este palco o velhinho James Taylor, e o seu tema imortal “You’ve got a friend”: “Sou teu amigo sim. Quando a vida corre mal, e tu ficas só e sentimental, sou só alguém que gosta e é leal. Tu tens um amigo aqui, e eu sou teu amigo, sim. Tens sarilhos, quem não tem, mas não há nada que eu não faça só por ti. Ficamos juntos até ao fim! Tu tens um amigo aqui. Sou teu amigo, sim, não sou mais forte, nem sou mais inteligente que tu. Quando estás aqui, não sei, mas mais ninguém é mais amigo que eu e tu, só nós os dois, pá. O tempo vai passar, e sem nos modificar. A amizade não vai ter fim, sou teu amigo sim”.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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