A leitura de O Diabo foi Meu Padeiro, de Mário Lúcio Sousa, publicado pela Dom Quixote, pareceu-me a melhor forma de assinalar o 25 de Abril.
A Colónia Penal de Chão Bom, ou Campo de Concentração, no Tarrafal, criada durante o Estado Novo na ilha de Santiago, em Cabo Verde, foi estreada em 1936 com centena e meia de prisioneiros políticos vindos da metrópole, que era preciso afastar e punir como exemplo. As exímias condições de vida dos encarcerados (sem água, sem comida, sem higiene, sujeitos ainda a doenças tropicais e a torturas) são conhecidas, para quem leu aqueles que por lá passaram (como Luandino Vieira), aqui recontadas por este autor cabo-verdiano nascido justamente no Tarrafal, em 1964.
Pela voz de vários prisioneiros, todos eles chamados Pedro, o livro atravessa as várias décadas de existência da colónia penal (e enfatize-se a palavra colónia), enquanto narra a história do final da ditadura portuguesa e da descolonização, pois esta é também a história da luta pela liberdade, conforme os presos planeiam fugas, mesmo não havendo para onde fugir. A narrativa inicia com Pedro Santos Soares, português levado para a colónia, na primeira leva de prisioneiros em 1936, de onde sai 4 anos depois, mas regressa em 1943 e ainda em 1951; Pedro José da Conceição, outro português, que será depois amnistiado, em 1946, tal como Pedro Soares (nesta fase teremos mesmo 2 narradores). Em 1954, julga-se que a Colónia seria encerrada, mas em 1962 chegará Pedro Benge com mais 30 angolanos – «afinal, mandaram para Portugal os brancos, e para cá os pretos» (p. 185). Depois, “Preto” Mancanha, preso guineense. E, por fim, em 1971, será a vez do narrador Pedro Rolando dos Reis Martins, cabo-verdiano.
O autor, ao optar por várias vozes narrativas, e adoptando o registo da língua de cada um, da variante portuguesa à guineense, celebra assim os vários modos de falar uma mesma língua – a língua do país que os subjugou mas, também, a língua que os une e lhes permite resgatar a sua memória, pois é em português que registam as suas histórias. Afinal, este livro é também um ajuste de contas com o passado, onde se registam as datas de morte, os nomes e as ocupações, dos vários presos cuja vida a colónia vai devorando – surgindo, no final, uma espécie de índice onomástico das centenas de presos do Tarrafal que “comeram o pão que o Diabo amassou”.