Kiara é o nome da cadela pitbull que está a ser disputada em tribunal por um casal de ex-namorados há cerca de um ano. O juiz Joaquim Manuel Silva fez história no Tribunal de Família e Menores de Mafra ao chamar o animal a tribunal para avaliar o nível de vinculação a cada um dos donos.
“A Kiara retrata o caso de duas pessoas que estiveram juntas, adquiriram uma cadela e que acabaram por se separar. O tribunal vai agora decidir em que termos é que a cadela fica”, afirmou o juiz em entrevista ao POSTAL.
Joaquim Silva explicou que “esta questão dos animais de companhia é trazida pela nova lei de 2017, em concreto no divórcio, obrigando a que exista uma decisão quanto ao destino dos animais de companhia que estavam na família”.
Um dos critérios para a decisão é o interesse do animal
O juiz recorda que “o casal explicou os motivos pelos quais seria benéfico para o animal ficar com cada um deles, foi tentado acordo e não foi possível chegar a um consenso. É preciso não esquecer que um dos critérios a ter em consideração é, de facto, o interesse do animal e, no caso dos animais de estimação, eles normalmente têm uma vinculação diferenciada a um ou a outro. Eu quis ver em tribunal esta questão para evitar ter de fazer uma perícia, que depois acabei por ter de pedir porque a observação não foi conclusiva”.
“Eu quis observar se o animal tinha mais vinculação a um ou a outro e por isso chamei a Kiara e os donos ao meu gabinete e estive a ver o animal a interagir com eles, no entanto, não foi suficiente”, acrescenta.
Juiz mandou fazer uma perícia ao comportamento do animal
Joaquim Manuel Silva mandou fazer uma perícia ao comportamento do animal para poder ter esse aspeto em conta. “A lei diz que temos de ter em consideração esse aspeto e não só os fatores relacionados com os donos e, como tal, tenho de fazer uma avaliação”.
“As pessoas fizeram muitas críticas a esta alteração da lei. Nós nos inventários dos tribunais chegamos a decidir, por exemplo, gaiolas de periquitos, panos de cozinha, tudo o que é importante para as pessoas…Então porquê criticar-se o facto de o tribunal decidir uma questão que gera tanta compaixão e amor entre os seres humanos? A relação que temos com os animais é tão profunda e reconfortante”.
“Se você reparar, se perguntar às pessoas que estão no fim da vida o que é que elas fariam de diferente se voltassem atrás a resposta é sempre a mesma: estaria mais tempo com os meus filhos, estaria mais… Tudo do lado da relação. As pessoas nunca lhe dirão “trabalharia mais, teria mais um carro ou outros bens materiais, por exemplo”.
“O que é verdadeiramente importante são as relações baseadas nos sentimentos, as relações familiares e também as relações com os animais que nos trazem o melhor de nós”, defende.
Joaquim Silva considera que o legislador foi muito sábio
A nova lei de 2017 estabelece um “estatuto jurídico dos animais, reconhecendo a sua natureza de seres vivos dotados de sensibilidade”.
Joaquim Silva considera que “o legislador foi muito sábio. É de fulcral importância assumir que esta é uma situação muito importante para todos os seres humanos, reconhecendo que os animais não são meras coisas, mas sim seres sensíveis”.
“É certo que os animais não criam a dita homeostase social, que é a parte cultural que nós temos, no entanto, não deixam de ser mamíferos e sendo mamíferos sentem como nós e, portanto, isso foi tido em consideração, a sua dignidade como mamífero. É importante proteger o interesse destes animais até como forma, no fundo, de tratar tudo o que está à nossa volta, com respeito e equilíbrio”.
Esta alteração “faz parte da evolução do século XXI, que vai ser um século bem diferente do ponto de vista das relações, da cultura humana e da cultura humana relativamente ao ambiente e aos outros animais. Vai ser uma relação muito mais sistémica e muito menos egocêntrica à volta dos humanos”, defende.
“Este novo olhar é muito importante, pois é fundamental não olhar para os humanos como seres transcendentais. Com esta atitude transcendental de que os seres humanos podem fazer tudo, podem poluir tudo, estamos a comprometer a nossa sobrevivência”.
Pedro Emanuel Paiva efetuou a perícia comportamental ao animal
Pedro Paiva fez a perícia comportamental ao animal. “Neste caso concreto foi uma nomeação do tribunal emanada pelo Dr. Joaquim, através do Juízo de Família e Menores de Mafra, com o objetivo de fazer uma perícia comportamental à cadela”, explicou ao POSTAL.
“A perícia já foi efetuada, no entanto, ainda não foi proferida sentença”, complementa.
Pedro Paiva realça que “este tipo de perícia é de extrema importância, pois sendo o cão um animal com emoção, condição prevista no decreto-lei de 2017, havia a necessidade de aferir esse lado”.
“Tínhamos de perceber ao nível do vínculo afetivo, e estando nós a falar numa eventualidade de guarda partilhada ou de decisão por um dos tutores, de que lado é que estava o vínculo afetivo mais forte”, explica.
O perito defende que “os animais podem revelar-nos tudo através do seu comportamento, no entanto, neste caso concreto aquilo que era preciso aferir ou medir era a questão emocional, ou seja, através da perícia que é composta por uma bateria de testes, eu tentei resumir o maior número de informações para que o Dr. Joaquim percebesse, em termos emocionais, com qual dos donos é que a Kiara tinha um vínculo mais forte. Neste caso, a ideia sempre foi perceber se a ligação emocional mais forte estaria do lado do tutor ou da tutora”.
Joaquim Manuel Silva é apelidado de “juiz amigo das crianças”
Joaquim Manuel Silva defende uma justiça de proximidade com as famílias, sendo o seu objetivo principal a proteção e o bem-estar das crianças. Os resultados do juiz são surpreendentes.
O magistrado tem uma alta taxa de sucesso em casos de pais em conflito. As estatísticas apontam para apenas um julgamento por ano em 500 processos tutelares cíveis. Joaquim Manuel Silva confessou ainda que “não manda crianças para adoção há quatro anos”.
O magistrado defende que “tudo se relaciona com o comportamento das pessoas e com a forma como podemos direcionar a nossa intervenção. Muito mais do que obter um acordo, é importante sabermos como é que podemos tocar o coração das pessoas, de forma a que elas próprias possam encontrar uma solução que beneficie o sistema e, neste caso concreto, a esfera familiar”.
“É necessário encontrar uma solução que beneficie todos e não uma solução ganha-perde. A solução que procuramos é uma solução ganha-ganha. A justiça restaurativa assenta nisso mesmo”, diz.
Joaquim Manuel Silva realça que “as pessoas é que têm de caminhar. No fundo é necessário direcionar as pessoas para crescerem, para que encontrem uma solução interior, sentida como útil para elas, para que a cumpram e para que a partir dali já tenham como pressuposto esse paradigma e não o paradigma com que chegam até nós”.
Joaquim Manuel Silva é natural de uma aldeia chamada Igreja Nova, no concelho de Mafra.
Licenciou-se primeiramente em Filosofia e começou a tirar o curso de Direito já casado e com filhos e terminou em 1996.
Joaquim Silva entrou dois anos depois na magistratura.
“Eu não vivo isto como uma profissão. Segunda-feira não é um dia chato para mim mas sim um dia super apaixonante”, confessa.
“O que me motiva é sentir que sou útil, que posso ajudar os outros e que acabo por tocar a vida das pessoas. Passo pela vida tocando a vida dos outros e não há nada mais reconfortante do que isso. Sentir que uma criança está bem, que um casal parental hoje funciona bem e contribuir para isso não tem preço. Sentir que podemos ajudar os outros é tão bom e motivador”, conclui.
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