Jerónimo de Sousa entrou no auditório do Lisboa Ginásio Clube 10 minutos depois da hora marcada e foi direto ao seu lugar na fila da frente. A iniciativa era da Juventude Comunista Portuguesa e o mote eram as comemorações do aniversário da Constituição da República Portuguesa. Cercado de críticas e isolado no Parlamento português devido à posição do PCP contra o governo ucraniano e a intervenção de Volodymyr Zelensky na Assembleia da República, o secretário-geral comunista ouviu os jovens defenderem os vários artigos da Constituição, subiu ao púlpito para defender ele próprio a lei fundamental, em particular a parte do texto que remete para o desarmamento e a defesa de soluções pacíficas para os conflitos internacionais (sem referir a situação da Ucrânia), e saiu assim que a jovem responsável pela organização deu por encerrada a sessão. Junto à porta, ainda acompanharia por breves instantes o coro que entoava “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”, mas alguém já tinha chamado o elevador. Era hora de ir embora.
Para trás ficava uma plateia de jovens politizados com cravos na mão. Pedro, Miguel, Mathias e Fábio não ouviram o discurso de Volodymyr Zelensky esta quinta-feira na Assembleia da República. Não por ‘statement’ político, apenas porque não calhou. Hão-de ouvir, dizem ao Expresso. Mas têm uma opinião vincada sobre o teor da intervenção. “É no mínimo irónico que Zelensky tenha vindo ao nosso país falar do 25 de Abril, que nos libertou do fascismo, tendo em conta as ligações que o Governo ucraniano tem a grupos de extrema-direita”, diz um deles. Mais, diz outro: “Vir para o nosso país falar do 25 de Abril e andar a ilegalizar partidos na Ucrânia…”
Não querem, contudo, alongar-se no tema ‘Ucrânia’. O que importa é a defesa integral da Constituição da República Portuguesa, mais do que ouvir Jerónimo, era isso que os juntava ali. E a Constituição o que diz, no artigo 7º, é que Portugal se deve reger pelo princípio da “defesa da paz”, argumentam, e que a proibição de partidos como a Ucrânia faz “com partidos de esquerda, comunistas, mas mesmo que não fossem de esquerda” não é admissível à luz da lei portuguesa. O que a Constituição (artigo 51º) também diz, contudo, é que “não podem constituir-se partidos (…) de índole regional”, sendo que a lei dos partidos (Lei n.º 2/2003) decreta também a proibição da existência de “partidos racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”.
Lá dentro, Afonso Beirão, da comissão política da JCP, tinha discursado antes de Jerónimo de Sousa para dizer isso mesmo: defender a Constituição é defender a paz. Sem se referir ao conflito na Ucrânia em concreto, diria que o PCP é o “único partido que cumpria a Constituição” ao ser o único que defende a via da paz como solução para os conflitos. Tudo o resto não é mais do que uma “campanha concertada anti-comunista”.
Jerónimo abordaria o tema também sem se referir ao caso concreto da Ucrânia/Rússia: “Na Constituição estipulam-se os justos princípios que devem nortear as relações internacionais e pelas quais Portugal se deve reger – os princípios da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos e da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados, o desarmamento e a dissolução dos blocos militares”, disse, numa intervenção lida sobre a defesa da Constituição onde deixou claro que o PCP se vai “opor” a qualquer tentativa da nova maioria parlamentar de “subverter” a lei fundamental. Recorde-se que o PCP votou a favor da Constituição, em abril de 1976, mas esteve por detrás das manifestações que, em novembro de 1975, cercaram a Assembleia Constituinte.
Na verdade, os números 1 e 2 do artigo 7º, dizem mais do que isso: “Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade”, lê-se. E ainda: “Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos”.
No entanto, a invasão russa da Ucrânia, no entender dos jovens comunistas ouvidos pelo Expresso, não entra no capítulo da abolição de todas as formas de agressão, domínio e exploração, porque acima disso está a defesa do desarmamento geral e da solução pacífica para os conflitos. “Para haver paz é preciso haver diálogo, e pedir mais armamento [como Zelensky fez] só vai fazer mais guerra”, diria um dos jovens à porta do recinto enquanto fumava um cigarro.
A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA GUERRA
Ao contrário dos restantes jovens com que o Expresso falou, Inês Guerreiro e André Arroz viram e ouviram o discurso do Presidente ucraniano no Parlamento português. E concordam com a posição tomada pelo seu partido de ficar ausente e de considerar insultuosa a referência de Zelensky ao 25 de Abril.
Não por serem contra a Ucrânia e o sofrimento do povo ucraniano, mas sim por serem contra a atitude bélica do Governo ucraniano como resposta à Rússia. “Uma coisa é estarmos ao lado do povo ucraniano, como estamos ao lado do povo palestiniano, outra coisa é estarmos ao lado do governo ucraniano”, diz Inês, repetindo a ideia: “O 25 de Abril no nosso país contribuiu para a paz, não para a guerra como [ele] está a contribuir.”
Uma coisa, contudo, o grupo de militantes da JCP admite: não é fácil explicar às pessoas a posição em contra-mão do PCP e essa é uma tarefa em que se empenham, fazendo a parte deles. “Temos vários jovens, de fora, que levantam dúvidas sobre isto e nós explicamos. Os receios dos jovens têm sobretudo a ver com as condições de vida, de acesso a habitação e a salários dignos, e o que acontece é que a guerra é muitas vezes instrumentalizada para justificar ainda mais o agravamento das condições e dos problemas que já existem”, continua Inês.
Miguel acredita que está do lado certo e que isso um dia será percecionado. “A nossa posição acabará por ser compreendida, a realidade acabará por dar razão ao PCP”, diz, convicto, citando uma sondagem publicada esta quinta-feira no Diário de Notícias segundo a qual “um quarto dos portugueses concorda com o voto contra dos comunistas” sobre a intervenção do presidente ucraniano. Mais do que apenas os que votaram PCP nas legislativas. E isso chega.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL