O falecimento de Jorge Sampaio deixa um grande vazio na vida política portuguesa e uma enorme falta no coração dos seus amigos.
É de luto e com emoção que escrevo este texto, na qualidade de seu amigo.
Quando, em 1967, retomei o trabalho revolucionário no interior do país, depois de sete anos nas prisões da ditadura e um ano de estudo na União Soviética, o nome de Jorge Sampaio era famoso como dirigente da luta estudantil e já então como advogado que defendia os presos políticos nos falsos tribunais fascistas, apelidados de «plenários».
Mas foi nas reuniões unitárias promotoras das comemorações populares do 25 de Abril que nos encontrámos, ele como representante da Intervenção Socialista e eu do PCP, entre representantes dos militares do MFA e de outras forças políticas, como o PS, o MDP e vários agrupamentos e ativistas de esquerda.
Era sempre complicado a escolha do lema das comemorações, cada um puxava a brasa à sua sardinha. Na preparação das comemorações de 1977 esta escolha arrastava-se, quando Jorge Sampaio apareceu propondo como lema: «25 de Abril sempre». Conseguiu-se o consenso, para que ele já revelava um jeito especial. E tal foi o consenso que ficou para sempre associado às comemorações do 25 de Abril. Ainda hoje se grita nas manifestações da vitória contra a ditadura: «25 de Abril sempre».
Iniciámos nessas reuniões um relacionamento político, de mútua consideração, que se reforçou quando nos voltámos a encontrar, anos depois, na Assembleia da República, ele como líder parlamentar do PS e eu como líder parlamentar do PCP.
A par dos duros confrontos oratórios, cimentámos uma amizade pessoal, que foi muitas vezes uma porta aberta a entendimentos entre o PS e o PCP.
Foi assim na sua candidatura a presidente da Câmara de Lisboa. Com grande surpresa minha, comunicou-me que era ele o candidato do PS e que queria apresentar-se em coligação ou entendimento com o PCP. Custou-me acreditar no que ouvia, visto que ele já era Secretário Geral do PS, natural candidato a primeiro ministro, falava-se mesmo de candidatos do meio autárquico, além disso, até então o PS tinha recusado qualquer aliança com o PCP.
«Que acha?» – perguntou-me. Não lhe podia responder, tinha que ouvir a direcção do meu Partido, justifiquei-me, mas cá para mim era coisa de grande alcance. Também Álvaro Cunhal, com quem falei de imediato, achou a ideia muito positiva e iniciaram-se as negociações, muito difíceis, mas que terminaram com sucesso. A Câmara de Lisboa foi ganha pela coligação.
Muito parecida foi a forma como me comunicou que ia candidatar-se a Presidência da República. Convidou-me para um jantar em sua casa, o que dado o nosso relacionamento não era estranho. A surpresa veio quando me comunicou a intenção de se candidatar ao cargo de presidente da República, acrescentando: «o meu amigo pode fazer uso desta minha decisão com quem ache que vale a pena, mas fazia gosto que falasse ao Dr. Álvaro Cunhal». É claro que falei, logo na manhã do dia seguinte. «Não podemos ter um presidente mais à esquerda em Portugal. Devemos encontrar as formas para lhe dar todo o apoio.» – foi a resposta de Cunhal – e começámos a trabalhar para o apoiar. Fez-se a unidade com o PS. Sampaio obteve uma brilhante vitória.
Em ambos os casos, o então líder do PS não hesitou em fazer alianças à sua esquerda para derrotar a direita, o que constitui um exemplo actualíssimo, que responsabiliza tanto socialistas, como comunistas e outros protagonistas de esquerda.
Os episódios históricos que referi põem também em evidência um traço forte na personalidade política de Jorge Sampaio: a audácia.
Na Presidência da República continuou a dar provas dela, como quando nomeou Santana Lopes primeiro ministro (no abandono do cargo por Durão Barroso) e quando o demitiu pela sua gestão trapalhona e incompetente. Igualmente nas dissoluções da Assembleia da República, na actuação no plano internacional, especialmente nos casos de Macau e Timor, nas acções humanitárias e solidárias com os refugiados e emigrantes, que desenvolveu depois de deixar a presidência.
No entanto, a audácia, nunca é exercida com leviandade, mas com uma rigorosa ponderação, como mostram as reflecções registadas nos seus famosos «cadernos», onde todos os dados são sopesados. A audácia e a ponderação sempre aparecem reunidas no seu modo de fazer.
Estes dois traços, que têm sido pouco referidos, mas que são essenciais na estatura de um político, combinam, no caso dele, com o encanto pessoal, a cordialidade, o espírito de diálogo, a firmeza das convicções, o patriotismo.
Tudo junto torna Jorge Sampaio numa figura única, das maiores, senão a maior dos cinquenta anos da nossa democracia, como tem sido salientado unanimemente, nestes dias de justíssimo luto nacional.
*O autor não escreve segundo o acordo ortográfico