Os irmãos iraquianos Yasir e Ammar Ameen, de 33 e 35 anos, foram acusados dos crimes de terrorismo e de guerra pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).
Segundo a acusação a que o Expresso teve acesso, os irmãos são suspeitos de terem pertencido a uma polícia de moral e costumes do Daesh aos serviços de informação e inteligência desta organização terrorista que instaurou um autoproclamado califado na Síria e no Iraque, de onde os irmãos são naturais e de onde fugiram em 2017 para a Grécia e para Portugal.
Ainda de acordo com a acusação, Ammar Ameen está acusado de “um crime de adesão a organização terrorista” e cinco crimes de guerra contra as pessoas “em, concurso aparente” com o crime de terrorismo internacional. É ainda acusado de resistência e coação contra funcionário. Este último crime já terá decorrido em Portugal contra um funcionário do SEF.
Yasir é igualmente suspeito de adesão a organização terrorista e crimes de guerra contra pessoas.
Os suspeitos estavam em Portugal desde março de 2017, tendo chegado ao nosso país infiltrados num grupo de refugiados que veio da Grécia.
Os irmãos suspeitos viviam em Mossul, o bastião do Daesh no Iraque, e eram militantes deste grupo radical islâmico. E segundo o MP, terão cometido “todo o tipo de crimes, incluindo tortura, contra a população civil, tendo praticado factos violadores dos direitos humanitários e genocídio” durante a ocupação do Daesh em Mossul entre 2014 e 2017.
Nesse ano, foram denunciados por algumas vítimas que os identificaram nas redes sociais. As queixas foram recebidas pouco depois da chegada a Portugal dos dois irmãos iraquianos no âmbito do programa de reinstalação da União Europeia.
Na ótica do MP, a sua presença em Portugal representava “uma ameaça séria para a segurança, a paz e a tranquilidade pública, pela possibilidade de cometerem atos terroristas em Portugal ou a partir de Portugal”. No entanto, não foram identificados indícios de que tivessem cometido, ou estivessem a preparar, quaisquer crimes desta natureza no nosso país.
Yasir trabalhou num restaurante em Lisboa que foi visitado por várias altas figuras do Estado português já quando era investigado por terrorismo. Chegou a tirar selfies com o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro António Costa e o então presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina.
Em setembro do ano passado, os dois iraquianos foram indiciados pela prática de crimes de adesão e apoio a organização terrorista internacional, de terrorismo internacional, e contra a humanidade.
O Iraque emitiu um mandado de captura contra estes dois suspeitos, mas como é um país que aplica a pena de morte, não é certo que Portugal os extradite.
A dupla chegou a ser defendida por Varela de Matos, mas o caso veio parar às mãos de Vítor Carreto e de Manuel Henriques.
TESTEMUNHA AMEAÇADA POR IRMÃOS DOS SUSPEITOS
A investigação da unidade de contra-terrorismo da PJ e do DCIAP aos dois irmãos iniciou-se em setembro de 2017, mas foram caracterizadas por dificuldades processuais, “materializadas nos
recursos interpostos pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa que vieram a ter integral provimento”. Ainda de acordo com o MP, “os factos pelos quais os arguidos são acusados tiveram lugar, essencialmente, no Iraque, o que dificultou, sobremaneira, a aquisição da prova”.
A partir de outubro de 2020, mês que marcou de forma significativa esta investigação, iniciou-se, pela primeira vez em Portugal, uma estreita cooperação entre as autoridades portuguesas e a UNITAD (Equipa de Investigação das Nações Unidas mandatada pelo Conselho de Segurança da ONU para Promover a Responsabilidade pelos Crimes Cometidos pelo Estado lslâmico/Daesh).
Depois de Yasir e Ammar Ameen terem sido detidos, e de já se encontrarem em prisão preventiva na cadeia de alta segurança do Monsanto, em Lisboa, foram ouvidas testemunhas e alegadas vítimas dos dois irmãos no Iraque para declarações de memória futura. Apesar das medidas de segurança para proteção das suas identidades pelo menos uma delas foi ameaçada no Iraque por irmãos dos dois suspeitos.
As ameaças tiveram lugar na própria noite da realização do depoimento da vítima: os familiares dos jiadistas disseram-lhe que caso algo acontecesse aos seus irmãos, esta seria considerada responsável. A testemunha não contara a ninguém que tinha testemunhado, ou iria testemunhar, neste processo-crime.
De acordo com o MP, a testemunha foi intimidada apenas duas horas depois de ser inquirida pelo Tribunal português, com a mediação da UNITAD. “Três dias depois, os mesmos irmãos dos arguidos voltaram a abordar a testemunha.” As autoridades concluíram que a identidade da testemunha e o seu papel no
processo-crime foram divulgados a dois familiares dos arguidos.
Esses factos motivaram a “promoção imediata da aplicação de medidas de coação complementares à prisão preventiva, designadamente a proibição de contactos telefónicos e de envio e receção de correspondência, para impedir a comunicação dos arguidos, presos preventivamente, com os familiares no Iraque, ainda que por interposta pessoa, tentando salvaguardar, por um lado, a integridade das testemunhas e, por outro, a produção de prova ainda em curso”, diz o DCIAP.
Este reforço das medidas de coação teve lugar em março deste ano. Mas após essa data houve mais testemunhas que tinham prestado declarações para memória futura a serem alvo de intimidação no Iraque por familiares dos suspeitos. Algo que obrigou um juiz de instrução iraquiano a avisar familiares e amigos dos dois jiadistas que seriam presos caso avisou “que seriam presos por interferirem no curso da justiça se contactassem mais testemunhas da acusação”.
RECRUTADOS PARA O DAESH POR UM IRMÃO
Os dois arguidos foram recrutados para o Estado Islâmico em 2014 pelo irmão, Fouad Ameen, figura proeminente no grupo terrorista e que já tinha pertencido à Al-Qaeda no Iraque.
Yasir e Ammar Ameen rapidamente passaram a ter cargos importantes no Daesh, em Mossul. O primeiro fez parte da Al Ammyah (Serviço de Proibição de Viagem), sendo responsável pela obtenção dos documentos dos infratores, com o objetivo de impedir a sua saída do território controlado. Já o segundo passou a exercer funções de destaque na Al Hisbah, sendo emir (comandante ou líder) num dos bairros daquela cidade iraquiana.
Os dois faziam fiscalizações armados de Glock e metralhadoras AK 47, controlando “se os homens e mulheres mantinham relações de adultério, se eram homossexuais, se cumpriam as orações em grupo, se consumiam pornografia, ou se pagavam a Zofrot (esmola, imposto religioso)”. Os castigos que aplicavam podiam ir de multas, a agressões e chicotadas. Também prendiam e ameaçavam de morte quem não cumprisse as obrigações ditadas pelo Daesh.
A FUGA PARA PORTUGAL
Na longa acusação de 242 páginas, a procuradora Cláudia Porto descreve ao detalhe a fuga dos irmãos Ameen do Iraque depois do princípio do fim do califado. Os arguidos “sabiam que se ficassem em Mossul, depois da queda do Estado Islâmico, podiam ser mortos”, diz a magistrada. “E sabiam, também, que poderiam ser punidos com pena de morte, sanção prevista no sistema penal iraquiano” para os atos “que praticaram como membros do Estado Islâmico”.
Por isso, na primavera de 2016, “antevendo a derrota do Estado Islâmico” e “procurando furtar-se a eventuais retaliações pelo facto de serem muito conhecidos pela população de Mossul” os dois irmãos planearam a fuga que terminaria em Portugal, onde entraram como refugiados. “Os arguidos não só atravessaram zonas dominadas pelo Estado Islâmico, como passaram mesmo por duas zonas de combate e terminaram a atravessar a fronteira para a Turquia numa zona controlada por passadores e contrabandistas do Estado Islâmico” diz a acusação, procurando demonstrar que os dois alegados terroristas “procuraram fugir das forças curdas e do regime iraquiano que combatiam o Estado Islâmico, por temerem ser identificados como membros do Estado Islâmico”.
A acusação descreve a passagem pela Turquia “de autocarro” e a chegada à Grécia numa embarcação “ampla” onde tiraram várias selfies.
Mas não é essa a versão dos arguidos. No depoimento que fez na Grécia, onde esteve num campo de refugiados durante um ano, Yasir Ameen contou ao entrevistador que deixou o Iraque “juntamente com o irmão” “após o Daesh ter tentado” obrigá-lo a juntar-se “a eles” e “ter recusado”. “Eles vão matar-me”. Disse ainda que chegou à Grécia num barco de seis metros que transportava 85 pessoas e que tinha quatro mil dólares que foram roubados. O Ministério Público diz que esta história é falsa, foi ensaiada e que encontrou no telemóvel do suspeito um documento com esta “história de cobertura” para conseguir o estatuto de refugiado, o que de facto veio a acontecer.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL