Imagine que a cada minuto um camião de lixo era despejado na sua praia.
Segundo as Nações Unidas é esta a escala do problema global, estimando-se que todos os anos entram no mar cerca de 11 milhões de toneladas de plástico. Sem mudanças, a previsão é que em 2040 este valor chegue às 29 milhões de toneladas anuais. E isto é só o plástico, que representa entre 60% e 90% de todos os resíduos que estão a acabar nos oceanos.
Se a maioria afunda (70%), há uma parte que continua a flutuar e eventualmente encontra nas marés um caminho de volta para terra. Foi a partir desta realidade que a Oceans Conservancy iniciou, há mais de 30 anos, o Dia Internacional da Limpeza Costeira – que se assinala anualmente no terceiro sábado de setembro.
“A importância deste dia é realmente chamar a atenção para um dos problemas que mais afeta o oceano, ou pelo menos o que é mais visível e fácil das pessoas perceberem, o lixo marinho”, explica Flávia Silva, da Fundação Oceano Azul. “Estamos na época balnear e temos as praias muito mais limpas do que noutras alturas do ano. Logo, a recolha de lixo é mais simbólica e de sensibilização.”
Ainda assim, a fundação – que pelo terceiro ano consecutivo está a agregar no seu site a informação das associações e iniciativas desenvolvidas para assinalar este dia – registou um total de mais de 42 toneladas recolhidas por voluntários em mais de 220 ações realizadas em 2019 e 2020. Para este ano, estão prevista mais de 150 ações entre 18 e 26 de setembro (veja neste mapa a ação mais próxima de si).
“Da minha experiência, quando as pessoas veem grandes quantidades de resíduos ficam bastante mais sensibilizadas”, afirma Rute Novais. A vice-presidente e membro fundadora da Brigada do Mar considera que a dimensão das ações desenvolvidas neste dia ajuda a trazer mais atenção mediática e mobilização.
Para a associação de voluntários esta é apenas mais uma das limpezas de praia que promovem ao longo de todo o ano. Ativa desde 2009, a Brigada do Mar começou como um grupo informal que juntava “amigos e amigos de amigos” para limpar zonas não concessionadas, que “não tendo ninguém diretamente responsável por elas, acabam por ser sítios onde há maior acumulação de resíduos”.
Atualmente têm mais de seis mil voluntários, contam com o Alto Patrocínio do Presidente da República e estão a levar esta questão a “outras dimensões”. Vão a escolas, a empresas e estão a estabelecer parcerias com empresas e universidades. “Estamos a trabalhar muito a economia circular, ou seja, a tentar não só deslocar o lixo das praias para os aterros, mas também a tentar que seja feita alguma coisa com esses resíduos.”
“PENTEAR” A PRAIA PARA DESCOBRIR DE ONDE VEM A “NOVA ESPÉCIE”
Ana Pêgo tem uma abordagem diferente. A bióloga marinha cresceu junto ao mar e foi a praia da sua infância que influenciou o seu futuro. “Há pessoas que têm quintais, eu tinha uma praia. Foi nesta praia que aprendi a gostar do mar, era onde passava a maior parte do tempo, tanto de verão como de inverno, e foi por causa dessa praia que decidi que um dia gostava de estudar biologia marinha.”
Mas há dez anos confrontou-se com “uma nova espécie na praia”. “Até aquela altura provavelmente já tinha visto lixo na praia, mas se calhar pensava como as outras pessoas, que se foi o mar que trouxe, depois o mar leva. Nessa altura que tomei consciência que não pode ser assim”, conta. “Naquela altura ninguém falava no assunto. Sentia-me completamente abandonada neste tema e angustiava-me imenso, porque sentia que à minha volta as pessoas não faziam ideia do que se estava a passar e não tinham consciência que os seus hábitos diários estavam a ter impacto negativo no mar e que muito do que fazíamos e consumimos estava a acabar na praia.”
Pela internet, Ana – que já trabalhava na altura na área da educação ambiental – descobriu o beachcombing (que em português pode ser traduzido por “pentear a praia”). Enquanto os beach cleaners (participantes em limpezas de praia) “fazem grandes limpezas de praia” e estão interessados em recolher a maior quantidade de lixo possível, os beachcombers, explica, “estão interessados na história dos objetos, focam-se mais em determinados objetos e querem saber de onde vieram, para que serviam, de quem eram, como foram ali parar”. “Considero muito importante esta identificação dos objetos, porque se conseguirmos saber o que é e de onde veio, se calhar é mais fácil travar o problema na fonte”, detalha.
Nascia assim, em 2015, o Plasticus Maritimus. Do projeto, que começou por ser uma página do Facebook onde partilhava o que ia encontrando, resultaram uma série de exposições em que é contada a história dos objetos, atividades educativas e palestras em escolas e um livro homónimo que está traduzido em dez línguas.
Ana continua a partilhar na rede social os resultados das suas idas à praia. Beatas de cigarro e cotonetes (“que vêm do mau hábito de deitar coisas na sanita pensando que aquilo provavelmente vai ser filtrado em algum sítio”) são os objetos mais comuns, mas é possível encontrar “quase tudo o que usamos no dia a dia”, afirma.
Entre os objetos mais surpreendentes que já encontrou estão objetos relacionados com cultos religiosos e as coisas antigas. Ana já encontrou casinhas do Monopólio, brindes dos gelados Olá e Rajá dos anos 60/70 e no início do ano encontrou o interior de uma carica da Coca-cola alusiva ao mundial de futebol México 86, com a cara do futebolista Veloso.
É ainda comum encontrar objetos relacionados com acidentes de contentores. Ana já achou tinteiros provenientes de um acidente que aconteceu ao largo da ilha das Flores em 2014. Através da internet, beachcombers de vários países conseguiram mapear a dispersão destes objetos, que foram parar a praias distantes, no Canadá, Dinamarca, Reino Unido ou Canárias, dando origem a um artigo científico.
Mas para a bióloga marinha, o mais surpreendente é a quantidade de objetos recentes que continuam a dar à costa. “Com as chuvas, cheias e erosão, as lixeiras vão sendo desenterradas e espalhando o lixo. Isso é normal, porque antigamente não havia gestão de resíduos. O que eu acho nada normal e que me incomoda é encontrar objetos recentes numa altura em que já temos gestão de resíduos há 25 anos e se fala tanto do assunto.” E dá o exemplo das cápsulas do café, “um objeto que está nas nossas vidas há relativamente poucos anos, mas que aparece em grandes quantidades na praia”.
A “ABORDAGEM POSITIVA” QUE ESTÁ A DAR A VOLTA AO PAÍS
O alemão Andreas Noe está focado num objeto específico: as beatas de cigarro.
“Há quatro anos estava a trabalhar enquanto biólogo molecular em Lisboa e quando ia surfar via muito plástico a flutuar no mar e nos areais. Estar num escritório não me preenchia e queria começar a fazer alguma coisa [em relação ao lixo marítimo]. Decidi despedir-me do meu trabalho e começar a apanhar plástico nas praias. Como adoro Portugal decidi ficar cá e desenvolver este projeto”, conta.
“Decidi que o queria fazer com uma abordagem positiva. Penso que quando apontamos o dedo às pessoas e as acusamos de fazer algo errado, acabamos por nunca mudar hábitos. Em vez disso decidi levar o meu ukulele e tocar canções engraçadas, e às vezes até ridículas, sobre o plástico que recolho na praia. Acredito que quando nos estivermos a divertir somos mais propensos a receber a mensagem.”
Surgiu assim o The Trash Traveler, uma página de Instagram onde o alemão partilha as suas aventuras e canções. No ano passado organizou a Plastic Hike e durante 58 dias percorreu as praias do país, recolhendo 1,6 toneladas de plástico. Pelo caminho contactou com mais de cem ONGs locais e produziu um documentário.
Este ano voltou à estrada com a Butt Hike. Até ao final de setembro vai viajar de Viana do Castelo ao Algarve a recolher beatas com as comunidades locais. Quando chegou a Sesimbra no início desta semana, a cerca de meio do caminho, tinha já 400 mil beatas na bagageira da caravana onde está a viajar.
“A maior parte das pessoas não sabem que as beatas também são plástico. É importante abrir os olhos e perceber que a poluição de plástico está em todo o lado, de formas que nós às vezes nem nos apercebemos”, argumenta.
Segundo a ONU, existem quinhentas vezes mais microplásticos (pedaços com menos de cinco milímetros de comprimento) no mar do que estrelas na nossa galáxia. O problema afeta todo o planeta, desde a ilha mais remota (a Ilha Henderson, que fica a um dia de navegação de qualquer sinal de civilização, terá recebido 18 toneladas de lixo marinho nas últimas décadas) até ao ponto mais profundo do oceano.
“O que tento sempre enfatizar é que é um problema global. Não é pior nem melhor aqui em Portugal. Na Alemanha, de onde eu sou, temos poluição de plásticos nas praias do norte, mas também nas nossas cidades e supermercados, como aqui.”
O “SURFISTA ECOLÓGICO” QUE QUER TER UM “IMPACTO POSITIVO” NOS MAIS NOVOS
Para Miguel Blanco o problema tornou-se incontornável precisamente quando começou a ir aos locais mais longínquos do mundo.
“O surf possibilitou-me ter um percurso de atleta, fazer campeonatos desde muito novo, surfar várias ondas diferentes pelo mundo inteiro e foi aí [que comecei a ver o problema]. Estava a viajar para os sítios famosos pelas ondas, pelas paisagens e pela água azul e quando ia deparava-me com uma realidade paralela ao que nos estão a vender. Num sítio que tinha altas ondas e onde parecia que era tudo perfeito, ao virar da esquina da praia via uma grande quantidade de plástico, as mulheres a ser maltratadas, miúdos muito novos a trabalhar… isso desde sempre que mexeu muito comigo e fez-me refletir”, recorda.
“Comecei a adotar pequenas medidas, como de cada vez que entrava na água apanhava o plástico que estava à superfície e punha nos calções de banho. E aos poucos fui ganhando mais consciência e tentando aprender um bocadinho mais sobre o problema e como tentar ajudar”, explica.
O surfista profissional, que cresceu na praia de São Pedro do Estoril, continuou o seu percurso competitivo. Foi duas vezes campeão nacional (2018 e 2019) e entrou em três provas do WCT em Peniche, a paragem portuguesa do circuito de elite do surf mundial. Pelo caminho foi capa da prestigiada revista Surfer, a publicação mais antiga do mundo dedicada à modalidade.
Nos últimos anos tem apostado no free surf, “que é a parte fora das competições”. “Esta parte do surf leva-me um pouco mais para as viagens e experiências, para conhecer um bocadinho mais a fundo os lugares e as pessoas, e isso claro que me leva para a parte da consciência ambiental. A degradação ambiental é algo que está muito presente em todas as partes do mundo. Agora é a hora. Aliás já se devia ter feito, mas estamos numa fase que é agora ou nunca”, afirma.
A tónica do ambiente passou a integrar os novos projetos. No início do ano esteve em São Tomé e Príncipe, onde participou na primeira limpeza de praia organizada por surfistas no país. Atualmente está a desenvolver a série “Impact”, onde mostra as suas “aventuras de surf pelo mundo” e se depara com “algumas situações da degradação ambiental” e se encontra com “ONG locais que já estão a tomar ações e a tentar dar a volta à situação”. Este domingo estará numa limpeza de praia em Carcavelos.
“Claro que sou um ser humano que come, bebe, tem casa e carro. É muito difícil não ter uma pegada ecológica. Revejo-me um bocadinho [nesta ideia do surfista ecológico] porque tento adaptar-me de uma maneira mais ecológica na minha realidade. Tenho um carro híbrido, tento não andar assim tanto de avião (visto que é a minha profissão), tenho uma dieta praticamente vegetariana, faço várias ações de limpeza de praia em que dou o nome e falo. Tento fazer o meu papel.”
Embora defenda que o “dia da limpeza costeira devia ser todos os dias”, reconhece o valor da iniciativa para “tentar passar a mensagem aos mais novos”. “Foi algo que eu sempre quis: através do surf e da imagem que crio, tentar criar um impacto positivo e influenciar as camadas jovens.”
UMA “MODA” COM MUITAS “INCOERÊNCIAS”
Entre os ativistas há uma certeza: há cada vez mais pessoas conscientes do problema. “Realmente nota-se uma grande evolução nestes últimos anos, não só em termos das pessoas que vão aderindo como da criação de organizações formais e informais”, afirma Flávia Silva. “Hoje vamos a uma praia e mesmo na época balnear notamos que há muito menos gente a abandonar o seu lixo.”
Menos otimista, Rute Novais acredita que a questão é mais complexa. Se por um lado a Brigada do Mar recebe todos os dias mensagens de pessoas que querem colaborar, ainda há muito que tem de mudar no quotidiano.
“A questão dos oceanos está na moda, mas depois chegamos aos supermercados e às escolas das nossas crianças e continuamos a ver uma grande quantidade de unidoses [a ser usadas]. No meio em que me movo vejo pessoas cada vez mais conscientes, mas ainda há muito a fazer. Não estamos a perceber bem o estado crítico em que estamos. Este falso conforto de quem não pensa no futuro tem de acabar.”
“Para mim é lembrarmo-nos do tempo dos avós. É deixar de enrolar a sandes na película aderente e levar antes um saco de linho. É perceber se precisamos mesmo das duas t-shirts ou se basta uma. É não comprar um kit de ganchos de cada cor para a criança. O consumo tem mesmo de ser mais consciente”, defende.
Ana Pêgo também se revela frustrada com as incoerências. “Estas grandes limpezas são importantes porque fazem a sensibilização, mas nem sempre as pessoas que estão a limpar as praias já conseguiram fazer mudanças em casa. Acho que às vezes é esta falta de coerência geral que faz com que estas coisas não sejam levadas a sério.” Dá um exemplo: em boa parte das escolas que visita, ainda não é feita a separação correta dos resíduos, apesar de serem desenvolvidas atividades de sensibilização.
Por outro lado, todos concordam com a urgência de acabar com o plástico descartável – que a nível global prefaz metade das 300 toneladas de plástico produzidas anualmente.
“O que devia estar a acontecer era os decisores políticos, municípios, empresas e universidades estarem a criar mudança para que as pessoas se sintam com a vida mais facilitada para poderem realmente fazer estas alterações no seu dia a dia. E isso não acontece. Muitas vezes essas mudanças só começam a acontecer quando as pessoas começam a recusar determinado tipo de produtos. Não devia ser assim.”
Notícia exclusiva do parceiro do jornal Postal do Algarve: Expresso