As tropas russas na Ucrânia têm matado civis, destruído famílias e arruinado cidades, mas há uma dimensão que não se consegue ver ou tocar: a devastação das pessoas por dentro com os traumas da guerra e com o stress pós-traumático. Bombas, ataques aéreos, massacres, valas comuns e violações de mulheres e crianças estão a fazer de muitos ucranianos ruínas de si próprios. Crianças que somatizam esses medos começam a ficar grisalhas, conta ao Expresso a psicóloga Suzanna Nakryiko, de 35 anos. Fugiu para Portugal com as duas filhas, mas continua as consultas online, mantendo contacto com uma rede de psicólogos, e ela própria não deixou de fazer terapia.
Suzanna aceitou dar um testemunho em vídeo ao Expresso, a contar essa experiência que tem muitas fontes: dos seus clientes aos outros psicólogos.
A obliteração interior com os horrores da guerra acabou por chegar aos próprios profissionais: “Depois de ouvir cinco clientes, o meu terapeuta estava a chorar e a contar: ‘Estou morto por dentro, esmagado por esta dor. Que devo fazer? Como posso trabalhar outra vez depois disto?’”, recorda Suzanna. “É insuportável, mesmo para os terapeutas, que devem estar treinados para gerir e lidar com a dor psicológica, mas somos todos humanos…”
O início da guerra: choque e paralisação
A guerra sugou tudo. Suzanna sente-se como se tivesse a vida “suspensa no ar, com uma perna aqui e outra lá”, na esperança de que o pesadelo acabe. Ainda tem a sua casa em Lviv, no oeste da Ucrânia, o seu consultório, uma carreira, um marido que ficou, a escola das filhas, uma normalidade difícil de recuperar. Para já, vive em Palmela e frequenta aulas de Português em Setúbal, mesmo sem espaço mental para aprender uma língua nova. A milhares de quilómetros, continua a trabalhar com clientes e colegas, o que lhe permite ter uma visão abrangente sobre os traumas da guerra na população e nos profissionais.
Os massacres e violações de Bucha: o fim da humanidade
O ponto de viragem que desfez a resistência psicológica foi o massacre de Bucha, localidade martirizada nos arredores de Kiev. Foi aí que a força dos que ainda não vacilavam se abateu. A terapeuta, que ajudou a procurar psicólogos para apoiar meninas violadas em Bucha ou Irpin, fala de profissionais com dificuldade em lidar com o sofrimento dos outros, porque mal lidam com o seu. “No início toda a gente estava em choque. É a primeira fase do trauma”, explica ao Expresso. “Quando após o choque se está assustado, fica-se paralisado, sem possibilidade de desabafar.” Depois da retirada das tropas russas do cerco à capital, as imagens não chocaram só o mundo: mudaram os próprios ucranianos.
As violações aconteceram também em Irpin e Kharkiv, conta a psicóloga, sem que tivessem o mesmo impacto mediático. Suzanna fala baixo e pausadamente, tenta controlar as emoções. “Foi quase em todo o lado. É difícil… estão a fazer isso nos territórios que controlam. Em Bucha foi muito concreto, muito mostrado nas notícias. Mas não aconteceu só lá.” Em Lviv, clientes da terapeuta estavam a alojar famílias de Kharkiv com histórias trágicas que contribuem para o trauma coletivo: “Uma mulher, cujo marido fora morto por russos, foi violada com o filho de sete anos a olhar. Essas histórias estão à nossa volta, estamos todos nesse processo de luto e pesar.”
Crianças grisalhas: a somatização dos traumas da guerra
O EFEITO NAS CRIANÇAS
A materialização de um mal absoluto que se podia ver nas imagens que correram mundo – com as acusações de crimes de guerra à Rússia – levou o grupo de Suzanna a procurar terapeutas voluntários para darem apoio psicológico às mulheres e meninas violadas. “Todos os meus clientes e os outros terapeutas que supervisiono choraram ao longo de 50 minutos”, durante as sessões, “porque lhes era insuportável ouvir sobre estas raparigas violadas”. Este trabalho exige extrema resiliência, é outra forma de combate: “Andámos a tentar arranjar terapeutas para estas meninas de 12 a 14 anos, violadas. E foi mesmo difícil encontrar psicólogos preparados para trabalhar com esta realidade.”
“Morto por dentro”: o sofrimento dos psicólogos
Suzanna Nakryiko integra uma “grande rede de psicoterapeutas, alguns especialistas em situações traumáticas e de violência”, que se organizaram para trabalhar com estas vítimas. “É preciso estar preparado, não se pode ser um psicólogo generalista para trabalhar com este nível de violência.” Quem tinha essa formação e especialização extra escrevia nos chats que estava “pronto”. Suzanna insistiu que a terapia fosse offline: “Deviam estar presentes junto das meninas”, porque “também é preciso apoiar os pais, que estão numa situação horrível, para criarem um ambiente acolhedor para as crianças”. Estas vítimas começam por estar “paralisadas, deprimidas, e deixam de crescer psicologicamente, ficam desligadas de pessoas mais próximas, por vergonha e sentimento de culpa, e do seu próprio corpo”, contextualiza. Para minimizar este trauma, será preciso assumi-lo, para que com ajuda próxima e carinhosa “possam passar pela dor, pelo medo e pela raiva… e, numa perspetiva de longo prazo, voltem a ter confiança”.
O sofrimento das crianças, que Suzanna testemunha até pelo comportamento das suas filhas, refugiadas deslocadas para tão longe, é generalizado. “As crianças estão a sofrer muito. Os pais estão em ansiedade permanente. Não há alegria nem sorrisos, nem carinhos, apenas medo, ansiedade e sofrimento”. Imagine um adulto a reagir às sirenes e aos bombardeamentos. Agora pense numa criança. Tornou-se mais comum a enurese: crianças que aos 10 ou 11 anos continuam a fazer chichi na cama. “Algumas ficam grisalhas, ou partes do cabelo tornam-se grisalhas, é mesmo horrível. Ou as pernas deixam de funcionar…”, conta Suzanna, especialista em efeitos psicossomáticos, mais comuns em crianças do que nos adultos. “Algumas crianças tornam-se hiperativas, outras ficam doentes, outras agarram-se aos pais, tendem a sentar-se ao colo o dia todo.”
A Revolução Euromaidan: o namorado assassinado em 2014
NÃO VOLTAR PARA TRÁS
Suzanna já conheceu a perda. Não é só de agora a angústia da distância e a ansiedade dos refugiados. Em 2014, quando se deu a revolução Euromaidan — que acabou com a fuga do então Presidente pró-russo Víktor Yanukovytch —, estava a estudar na Universidade Sigmund Freud, em Viena de Áustria. A meio de uma aula, a notícia chegou-lhe pelo Facebook: o seu namorado, historiador de 30 anos, tinha sido assassinado com um tiro na cabeça. Foi um dos 100 mortos pelas forças da polícia governamental no dia mais sangrento da revolta contra a passagem da Ucrânia para a esfera de influência russa.
“A nova geração queria viver numa perspetiva europeia”, diz a psicóloga. “Estavam a lutar pelos seus direitos. Agora é um desespero, não se pode fazer nada por causa das bombas, já não podemos ir para Maidan [praça principal de Kiev] lutar por uma revolução, dizer que não queríamos viver a vida anterior.” Enquanto não acabar a guerra, dificilmente as cidades serão reconstruídas. E dificilmente será reconstruída a estrutura interior de muitos ucranianos.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL