No dia 1 de Dezembro de 2020 faleceu Eduardo Lourenço de Faria, considerado figura essencial de Portugal pelo governo português.
“Sou acima de tudo um leitor”, disse um dia.
O seu intelecto produziu reflexões que se basearam em tudo aquilo que leu, ouviu e observou, nascendo assim um pensamento onde as palavras foram estrelas, com uma luz muito especial, que iluminaram a compreensão do essencial da vida humana.
Eduardo Lourenço de Faria nasceu no dia 23 de Maio de 1923 em São Pedro do Rio Seco, concelho de Almeida, distrito da Guarda. Licenciou-se em ciências histórico-filosóficas em 1946 na Universidade de Coimbra. Foi professor assistente na Universidade de Letras entre 1947 e 1953. Casou-se com Annie Salamon em 1954, em Dinard. Passou a viver em França em 1960. Foi professor universitário em várias universidades francesas e tornou-se professor jubilado em Nice em 1988. Foi conselheiro cultural na embaixada portuguesa em Roma. De 2016 a 2020 foi conselheiro do estado português.
Publicou uma vasta obra literária, entre as quais Heterodoxia (1949); O desespero humanista na obra de Miguel Torga e o das novas gerações (1955); Sentido e forma da poesia neo-realista (1968); Fernando Pessoa revisitado. Leitura estruturante do drama em gente (1973). Tempo e poesia – À volta da literatura (1974); O labirinto da saudade. Psicanálise mítica do destino português (1978); O complexo de Marx ou o fim do destino português (1979); Ocasionais I (1984); Nós e a Europa ou as duas razões (1988); O canto do signo – Existência e literatura (1994); A Europa – Para uma mitologia europeia (1994); O esplendor do caos (1998); Portugal como destino, seguido de mitologia da saudade (1999); O lugar do anjo – Ensaios pessoanos (2004); O outro lado da lua – a Ibéria segundo Eduardo Lourenço (2005); A esquerda na encruzilhada ou fora da história? – Ensaios políticos (2009).
O significado da palavra heterodoxia, título da sua primeira obra literária, sintetiza bem o fulgor do seu espírito no início da sua carreira literária, onde existia um desejo de oposição a tudo o que fosse ortodoxo.
Não quis ser médico, profissão que o seu pai gostaria que ele seguisse, exatamente porque não queira ter amarras a nenhuma carreira, apesar do respeito imenso que nutria por todos os profissionais de saúde, a quem ele apelidou de nossos deuses.
Não quis ser militar, que foi a profissão do seu pai, por não querer que nada limitasse a sua liberdade.
Ele quis ser um pensador livre, quis que a sua profissão fosse o seu pensamento e consegui-o brilhantemente.
A sua base fenomenológica levou-o a procurar a essência das coisas numa visão consciente do conhecimento existente no mundo.
A filosofia de Hegel e Kierkegaard influenciou-o muitíssimo no início da sua carreira, mas foi na poesia que teve as respostas mais sábias para gáudio do seu sensível intelecto, tornando-se assim num fenomenal ensaísta, primeiramente da poesia e posteriormente dos fenómenos sociais e culturais presentes em Portugal e na Europa.
Tinha uma visão sobre Portugal e a Europa muito atenta e crítica do ponto de vista social, histórico e cultural.
Teve como especial obsessão a compreensão de Portugal e a identidade dos portugueses.
Para atingir esse objetivo, utilizou todos os meios de conhecimento que dispunha, nomeadamente a psicologia, a sociologia, a filosofia , a história, a literatura, a pintura e a política.
Todas essas ciências foram escalpelizadas, estudadas e aprofundadas, posteriormente cozinhadas como de uma receita se tratasse, no intuito de perceber ao ínfimo pormenor as terras lusitanas.
Na obra “O Labirinto da saudade”, que é um genial ensaio sobre o nosso país, disse o seguinte: “Não escrevi estes ensaios para recuperar um país que nunca perdi, mas para o pensar, com a mesma paixão e sangue-frio intelectual com que o pensava quando tive a felicidade melancólica de viver nele como prisioneiro de alma”.
Essa paixão sente-se em cada palavra dos seus ensaios.
Refletiu desde sempre sobre o papel que Portugal teve na Europa no passado e foi sempre acompanhando a ação de Portugal como membro do continente europeu ao longo da sua carreira, que no fundo foi uma carreira de pensador.
Obviamente que ele no início não sabia que o iria ser, mas tornou-se num pensador sublime que se dedicou inteiramente ao estudo do fenómeno da cultura em si mesmo, ao verdadeiro significado da palavra cultura, criando assim uma identidade cultural que o distinguia imensamente através de uma luz poética que caracterizava os seus eruditos discursos.
As ideias da geração de 70 do século XIX tiveram uma importância muito grande no desbravar do caminho que o levou a pensar Portugal.
No fenomenal “Labirinto da Saudade” referiu que “Nenhum povo pode viver em harmonia consigo mesmo sem uma imagem positiva de si. A revolução de abril restituiu ao cidadão português a plenitude dos direitos cívicos comuns às democracias ocidentais”.
Portugal, a Europa, a literatura e a poesia foram os quatro grandes temas das suas reflexões.
Tinha um discurso fascinante onde a cultura, a cidadania e o conhecimento se fundiam num terno poema.
Num dos seus ensaios poéticos referiu que “só a palavra poética é libertação do mundo”.
Se João Vilarett foi o declamador por excelência da poesia portuguesa, Eduardo Lourenço foi o ensaísta por excelência da poesia portuguesa, através de uma mestria prodigiosa na análise dos textos aliada a uma enorme sensibilidade.
Considerava a leitura tão urgente e tão óbvia que não era necessário nenhuma justificação para todas as campanhas que incentivam a leitura, pois para ele leitura era sinónimo de cultura.
Residente em França desde 1955, considerava Portugal um recanto encantador, onde as montanhas existentes no distrito da Guarda foram as paisagens que mais o marcaram na sua infância, onde o som do vento simbolizava a música da natureza.
Tinha um supremo fascínio pela história que o levou a afirmar que “Não há romance nenhum que seja tão fantástico como a própria história”.
Foi um idealista convicto e um extremo filósofo, apesar de não ter nada de radical, o que poderá ser um contra-senso, mas que se justifica pelo facto da sua crítica ser acima de tudo compreensão.
Foi talvez a figura mais consensual da cultura e da intelectualidade portuguesa nos séculos vinte e vinte e um.
No magistral livro “Tempo e Poesia”, referiu que “O essencial os poemas o guardam e por isso são poemas”, o que reflete bem o lugar que ele achava que a poesia deveria ter no mundo.
Tal como ele considerou a vida de José Saramago, também a sua vida foi um autêntico milagre na medida em que nasceu numa aldeia pobre, sem luz e sem água e tornou-se num dos maiores pensadores de Portugal.
Vencedor do prémio europeu de ensaio Charles Veillon (1988), prémio Camões (1996), criação da cátedra Eduardo Lourenço de História da cultura portuguesa na Universidade de Bolonha (2007), prémio Pessoa (2011) e muitos outros títulos, distinções e condecorações em Portugal e em França, merecia no meu entendimento, sem qualquer dúvida, ter ganho o Nobel da literatura.
Mia Couto disse o seguinte: “Com os meus livros quero acima de tudo ter uma relação poética com o mundo”.
Eduardo Lourenço vinculou-se a uma vida poética no momento em que decidiu ser um pensador livre.