Lá fora a chuva cai e insiste em chamar a minha atenção para a janela do escritório. Num instante pareceu-me ouvir a Natureza sussurrar não desistam, não é tempo de desistirmos! A água, lembra-me a vida e a riqueza, faz-me sentir a Primavera e os ciclos que mais uma vez, se vão cumprir e levar-nos ao rumo que deve ser seguido…
A pressão de terminar a escrita do artigo científico em mãos, instabiliza-me e respiro para pensar. Entre os pingos da chuva no vidro, vêm-me à memória as dificuldades do momento… a força que empurra muitos para a linha da frente, e que refugia outros, na procura incessante da justificação do presente e da perspetiva do futuro, que se vislumbra incerto e desafiante. Vêm-me à cabeça histórias da minha infância, relatos de realidades difíceis, vividas nos longínquos anos trinta do passado século, num mundo rural profundo no Norte do país, em dois contextos de abundância muito distintos, e que mais tarde se viriam a fundir por uma desconcertante história de amor. A fome e a pobreza vencidas pela necessidade de uma jovem mãe, criar quatro filhos, deixada para trás, por um marido que rumou ao Brasil. O brilho daqueles olhos pequeninos da minha avó, a contar-me – quando a tua mãe se casou fui ter com ele e foi meu, muitos anos, até me morrer nos braços. A realidade dos grandes lavradores, onde ser-se rico significava ter mais trabalho para si e para os que, sobre a sua alçada, trabalhavam para dar de comer aos filhos. Os verdadeiros valores sempre se passaram, de pai para filho na lavoura da terra, de sol a sol, e de avô para neto, entre histórias e risadas que nos aqueciam o coração… e que devemos manter, sobretudo neste tempo de covid-19.
Como nos tem desconcertado este vírus, a Rita consciente da falta de saúde do marido e que não abandona os serviços municipais, porque os mais desfavorecidos, ainda têm agora menos de comer e mais motivos para adoecer. A Inês já treinada em perdas irreparáveis, que me responde no Whatsapp, entre dois pacientes – Sabes, o que mais me custa é não poder apertar os meus filhos e a minha neta. A Marta, que para conseguir ser pediatra deixou a família, desbravou fronteiras e culturas de Leste, e que ontem saiu para mais uma noite de banco, de coração apertado, deixando os seus meninos pequenos em casa com o marido, para valer aos meninos pequenos dos outros. A Maria que me diz – Obrigada. E agora entrego-lhe a chave, porque tenho muito medo de sair de casa, e já consegui a minha reforma. O João, com familiares doentes e isolados, que me relata com orgulho a sua produção agrícola, e como no fim de cada dia de lavoura, vai com o seu trator desinfetar as ruas da freguesia. Recordo o telefonema da Paula, tão preocupada em manter os trinta postos de trabalho na empresa que o pai lhe pôs no colo, mas consciente de que não pode hipotecar a educação dos seus filhos. O arrepio sentido ao ouvir as palavras do Santo Padre. Quero acreditar que os ensinamentos das infâncias vividas não nos vão abandonar, e que essas raízes alimentarão a estrutura humana, que manterá a sociedade viva e coesa, num rumo nunca desnorteado.
No andar de baixo ouço tossir, ligo à mana que a vida me deu, também ela num momento de provação, e peço orientação médica. Eu, como todos nós, insisto em acreditar que por aqui e por enquanto, nada mudou… e que quando mudar, continuaremos no rumo certo!