“Quando a tempestade acabar não recordarás como conseguiste, como sobreviveste. Nem sequer estarás seguro que a tempestade realmente acabou. Mas uma coisa é certa, quando saíres da tormenta não serás a mesma pessoa que nela entrou. Disso trata a tormenta.”
Haruki Murakami, escritor japonês
in “Kafka à beira mar
Se desejarmos avaliar o momento actual, objectiva e projectivamente, teremos de partir da análise do processo de desenvolvimento cultural do País, tarefa fundamental não só pelos elementos ideológicos de várias épocas e interpretações que subsistem, mas igualmente pelos patrimónios e infraestruturas que nos chegaram.
A cultura em sentido amplo e as artes, funcionaram desde sempre intimamente ligadas aos poderes e aos mecenas, mas foram em muitos momentos consciência crítica da sociedade e contrapoder. A cultura como função do Estado é recente, foi sobretudo no século XIX que, resultado das ideias iluministas e democratizadoras, a educação e cultura transitaram para a esfera pública.
Durante o Estado Novo, não recuando aos movimentos culturais do período da 1ª República (1910-1926), o organismo estruturante de toda a política cultural em Portugal foi o Secretariado Nacional da Propaganda criado a 27 de outubro de 1933, cujo objectivo era divulgar a ideologia da “Revolução Nacional ”, suportada numa mitologia étnica, de desígnios e heróis, transformada em doutrina do Estado e suporte da ditadura.
O SNP dotado de poderosos meios num País com escassas capacidades internas, dirigido por António Ferro, intelectual prestigiado pela estreita relação com o movimento modernista português, admirador dos regimes autoritários. Como jornalista entrevistou Mussolini, Hitler, Primo de Rivera, escreveu também um livro apologético sobre Salazar. Ferro seguiu como linhas estratégicas, a sedução dos intelectuais e artistas de qualidades reconhecidas, propondo-lhes encomendas orientadas para temas previamente escolhidos, também desenvolveu um programa de cultura popular encenada ligada à doutrinação.
O legado dessas décadas foram de diversos géneros, o folclore como encenação das danças do mundo rural e as “marchas populares”, a Exposição Colonial de 1934, a promoção do cinema de pendor nacionalista, os bailados “Verde Gaio” e o “Teatro do Povo”, prémios nacionais de história, ensaio, poesia,… contudo a grande realização desse período de forte exaltação nacionalista foi a “Exposição do Mundo Português”, realizada em Lisboa entre Junho e Dezembro de 1940, assinalando a Fundação da Nacionalidade em 1140, a restauração de 1640 e a celebração das obras do Estado Novo em 1940, logo no inicio da II Guerra Mundial.
Desta exposição, a mais importante realização cultural de meio século de regime, persistem marcas na área entre os Jerónimos e o rio Tejo, o “monumento aos descobrimentos” da autoria do arquitecto Cotinelli Telmo e do escultor Leopoldo de Almeida, o jardim da Praça do Império e o Museu de Arte Popular. Nos diversos projectos trabalharam os arquitectos Pardal Monteiro, Carlos Ramos, Jorge Segurado, Raul Lino, entre outros e dezenas de pintores reconhecidos como Bernardo Marques, Carlos Botelho, Almada Negreiros, Jorge Barradas, Sarah Afonso,… Portugal só voltaria a organizar uma exposição de maior grande envergadura em 1998, com a EXPO de Lisboa também ligada aos oceanos , que transformou a zona oriental de Lisboa.
Mas nem tudo foram adesões e seduções do regime corporativo, muitos cientistas, escritores e artistas ligados às correntes democráticas da oposição, eram vigiados e tiveram de se exilar, vários foram presos, as suas obras banidas ou censuradas. A lista é vasta, com referência para figuras centrais da cultura portuguesa como Jaime Cortesão, Borges Coelho, Júlio Pomar, Jorge de Sena, Miguel Torga, Abel Salazar, António José Saraiva, Costa Pinheiro, José Cardoso Pires, e tantos outros, incluindo intelectuais ligados as lutas pela independência das colónias.
Uma conflitualidade dialéctica percorre a história da cultura portuguesa no século XX, em apenas 100 anos o País conheceu quatro regimes político-constitucionais: monarquia, 1ª Republica, Estado Novo e a Democracia Democrática Parlamentar. Nessa vivência de antagonismos dialécticos, coexistem cosmopolitismos e cultura popular, nacionalismo e universalismo, o que originou alterações de discursos sobre a identidade nacional.
Após o 25 de abril de 1974 e o fim de 500 anos de “Portugal Ultramarino” surgiu uma nova realidade económica, social e cultural, um novo discurso sobre a cultura portuguesa como parte integrante da “cultura europeia”.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de maio)