Depois de construída a Biblioteca, a atenção de Malatesta Novello fixa-se em dotá-la de um espólio literário numeroso e diversificado. Na sua visão, somente através da leitura a mente humana se liberta da ignorância e voa em direcção ao verdadeiro conhecimento, tornando-se efetivamente livre. Esta ideia é representada pela borboleta, elemento muitas vezes desenhado nos manuscritos executados nesta biblioteca. A borboleta é uma representação da natureza espiritual da alma capaz de se libertar da matéria bruta, como a crisálida faz com o casulo. De uma perspetiva mais romântica, a presença deste elemento nos manuscritos de Malatesta é também interpretada como desejo de fertilidade para Violante, esposa de Malatesta Novello.
De forma a munir de obras a sua biblioteca, Malatesta Novello seguiu dois caminhos distintos. O primeiro era encontrar e comprar livros do Oriente, da Grécia ou de outras regiões. Chegou, inclusive, a adquirir obras “perdidas” em naufrágios das embarcações que os transportavam.
A segunda via, aquela que aqui mais nos interessa desenvolver, era conceber um ‘scriptorium‘ onde, através de uma atividade laboriosa e bem organizada, eram copiados os livros que ele pedia emprestados a alguns dos seus amigos mais influentes e que na época governavam em Itália. O ‘scriptorium‘ da biblioteca Malatestiana operou durante cerca de duas décadas, tendo produzido cento e vinte códices. De forma a concebermos uma imagem mental de como seria um scriptorium, basta pensar no filme ‘O Nome da Rosa’, inspirado pelo afamado livro homónimo do escritor Umberto Eco. Nalgumas iluminuras que até nós chegaram, como a que representa Santo Agostinho, encontramos também representações desses espaços de intenso trabalho por parte de copistas e iluminadores (veja-se as imagens anexas).
Munido da sua bancada de trabalho e tendo o livro a copiar disponível, o copista precisava então de preparar os pergaminhos, feitos de peles de animais. Começava por marcar e cortar as peças de modo a obter uma folha quadrada. Equalizar a espessura das peças cortadas era o passo seguinte, seguindo-se as dobras até formar um ‘ficheiro’. Chegado a este ponto, o copista necessitava agora de marcar as linhas nas folhas, delimitando assim a área reservada à escrita e separando-a da área relativa às Iluminuras.
Como utensílios de escrita, os copistas usavam penas de ganso devidamente preparadas e temperadas de forma a obter uma ponta dura e fina. Tinteiros com diferentes tipos de tintas negras e algumas cores, bem como um raspador para corrigir eventuais erros, completavam o seu equipamento de escrita.
Os copistas da biblioteca de Malatesta vieram não só de Itália, mas também de outros países europeus, como é o caso de Jean D’Epinal, um notável e prolífico copista francês, que tinha adquirido a cidadania em Cesena, onde tinha casado e alcançado uma posição económica e social notável. Mathias Kuler, copista alemão, Thomas Blawart, copista holandês, além dos italianos Jacopo Da Pergola, Francesco Da Figline ou Giovanni Da Magonza foram outros nomes que é sabido terem desenvolvido atividade no scriptoriumde Malatesta. Fruto da popularidade e dos avultados pagamentos que auferiam pela sua atividade, os copistas gozavam de um estatuto social assinalável. Mas destes, há um caso curioso, o de Mathias Kuler, que ficou célebre por ser amante da boa e desregrada vida, algo difícil de compatibilizar com o labor de copista. No final de uma obra por si copiada para a biblioteca Malatestiana, Kuler escreve que o vinho e as mulheres nas tabernas o tinham deixado sem dinheiro, mas enfatiza a sua capacidade como copista acrescentando que o livro foi “escrito com as suas mãos e não com os seus pés”.
Uma vez terminado o trabalho de escrita do copista, era a vez do iluminador iniciar o seu labor, embelezando as páginas com ilustrações e decorações luminosas e coloridas. Equipado com pincéis e pigmentos de várias cores, o iluminador começava a decorar as secções do livro deixadas em branco pelo copista. A sua técnica de iluminura pode ser resumida em três fases sucessivas: o desenho, a douradura (ou douração) e a coloração.
O desenho era feito “à mão livre” e outras vezes traçado por modelos previamente feitos. Na douração, processo essencial para embelezar a iluminura, eram utilizadas folhas de ouro muito finas ou pó de outros metais de coloração dourada. A título de curiosidade, sabe-se que a partir de uma única moeda de ouro, um batedor (designação de quem executava esta atividade minuciosa) conseguia obter cerca de cinco metros de uma finíssima folha de ouro.
O processo de elaboração da iluminura terminava com a aplicação de cores e de uma pátina, camada que polia e protegia a iluminura. De referir também que os pigmentos usados eram bastante caros e alguns assaz difíceis de obter, pelo que a escolha das cores a usar era um processo muito ponderado por quem encomendava e pagava este serviço.
Apesar das muitas pesquisas e estudos feitos ao longo dos séculos, praticamente todos os iluminadores que trabalharam no scriptoriumde Malatesta permaneceram incógnitos, encontrando-se apenas a referência de que os trabalhos ali realizados foram executados pelo “Mestre da Borboleta”.
Terminado o códice, este apenas necessitava de ser cuidadosamente encadernado e posteriormente levado para o seu devido plúteo (banco de leitura) e a ele acorrentado, local onde ainda hoje se encontra, mais de cinco séculos depois, e onde é possível ser visto e testemunhado com emoção por quem possa ter a oportunidade de visitar este autêntico tesouro cultural: a biblioteca de Malatesta Novello, em Cesena.
(Tradução de Nuno M. Viegas)
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