O navio entra na barra do Arade. Primeiro, o deslumbramento da Praia da Rocha, depois o forte de Santa Catarina e o castelo de Ferragudo em frente. Mas para o encanto ser maior, havemos de subir ao Cabo de João d’Arens, seguindo o olhar de Manuel Teixeira Gomes, a ver como o mar ali respira largamente.
“Eu julgo que a realização perfeita da paisagem marítima grega, tal como os poetas da antiguidade a conceberam, está no troço da costa do Algarve entre a Ponta do Altar e a Ponta da Piedade. Isto é, desde a barra de Portimão até ao fecho da baía de Lagos”.
Foi esta paisagem, com “um montão de rochas a crescer pelo mar dentro”, que um dia serviu de inspiração ao escritor portimonense. E que hoje constitui o fascínio de todos os que percorrem esses lugares.
Embora a paisagem, espraiada no olhar poético do escritor, esteja em alguns casos profundamente tocada pela pressão resultante de uma massificação urbanística dispensável, é possível colher ainda o brilho de um quadro único pintado a cores que tanto prendeu Teixeira Gomes: “o mesmo paraíso sempre renovado das marés.”
Mas é preciso saber olhar, pois que ali – avisa ele -,“tudo desperta e reveste inéditos aspectos! Olhos que pretendem ver tudo, não vêem nada; e de que serve isso se a alma não vibrar também!”
Mas, sem perder de vista o encantamento do escritor perante o cenário “helénico, sensual, ao mesmo tempo sereno e voluptuoso” à sua frente, rodemos o olhar para “a fluidez azul do Vale do Vau”, já a caminho de Alvor que acolheu El Rei D. João II. Desiludido pelos médicos, após tratamento nas termas de Monchique, veio o Príncipe Perfeito recolher-se em casa de Álvaro de Ataíde, alcaide mor de Alvor, onde acabou por falecer. O seu filho Jorge de Lencastre, ficaria ao cuidado e em casa de D. Martinho de Castelo Branco, primeiro Conde de Vila Nova de Portimão, outra nobre e ilustre figura da terra. Foi conselheiro real, vedor do reino, testamenteiro de D. João II e do seu cunhado e sucessor, D. Manuel I. Tendo sido ainda, camareiro mor de D. João III.
Mas, Alvor também traz à lembrança a devastação bárbara que os cruzados e o exército de D. Sancho, ali provocaram deixando atrás de si um rasto de sangue, de destruição e morte. Mais de cinco mil pessoas entre homens, mulheres e crianças, foram passadas indiscriminadamente a fio de espada em nome de uma certa ideia de Deus.
O nome de Portimão, que regista a sua história nas pedras de Alcalar e Abicada, perde-se nas brumas do tempo. Do seu passado não se lhe conhecem os feitos que engradeceram Lagos ou Silves, suas vizinhas. Mas viveu certamente atos de valor, a calcular pelos nomes que foi tomando de tantas e desvairadas gentes – fenícios, gregos, cartagineses, romanos, árabes – que por ali passaram: Conoran, Barcínia, Portus Hannibalis, Portimunt ou Portus Magnus.
A cidade ficaria localizada mais a jusante, quase junto à foz do rio. Um pouco distante do local onde se desenvolveria e acabaria por se fixar mais tarde. Assim o confirma também, Teixeira Gomes: “Portimão, onde eu nasci, não se vê do mar: fica recolhida na bacia do rio Arade, encostada quase às faldas da serra, que lhe serve de fundo, e tendo fronteira uma pitoresca aldeia, em forma de pirâmide, que se chama Ferragudo”.
Seja rio abaixo ou mais acima, o que se pode dizer com segurança é que a primitiva cidadela pertencia ao termo de Silves e era o porto de mar e de defesa da próspera, rica, populosa e culta Shelb, capital do reino do Garb al Andaluz.
Com o declínio de Silves, os privilégios concedidos por D. Afonso V, fazem nascer uma povoação que acabaria por receber o nome de Vila Nova de Portimão, um senhorio e condado que lhe foi assegurando prestígio, riqueza e a sua afirmação regional.
As águas do Arade correram cheias de memórias desde tempos imemoriais. E se é difícil afirmar sem margem para controvérsia, que Aníbal Barca andou por aqui e fez do local o seu Portus Hannibalis, a verdade é que os vestígios de Cartago e dos romanos estão muito presentes em ânforas, moedas, tanques de salga, artefactos de bronze, cisternas e outros engenhos. E sobretudo na importante vila da Abicada, na Mexilhoeira Grande, ali perto.
A presença árabe é também denunciada a cada passo, no nome das coisas e dos lugares. E cerâmicas da dinastia Ming foram encontradas também aquando das obras, nos anos oitenta, de desassoreamento do porto e que ficaram livremente, como tudo o resto, ao dispor de mãos alheias e à pilhagem dos caçadores de tesouros. Tudo isto é dito para atestar a antiguidade e a importância estratégica do porto de Portimão, desde as épocas mais longínquas.
Com o tempo, ganhou autonomia contra o poder e a vontade de Silves, capital do reino. E já no século XVII, durante o período filipino, com a construção dos fortes de S. João, em Ferragudo, e de Santa Catarina, na Praia da Rocha, a vila viu reforçada a sua defesa dos constantes ataques de piratas e corsários. Seguiu-se um período de grande prosperidade que acabou por ser novamente contrariada pela devastação provocada pelo terramoto de 1755.
No século XIX, a indústria conserveira fez de novo renascer das cinzas a nova fénix, que depressa se tornou num dos principais portos de pesca do país. E o reconhecimento oficial acabou por não tardar muito.
Em 1924, a sua importância estratégica e económica, já então a par das praças mais ricas do litoral algarvio, deram-lhe o estatuto de cidade. Por decisão e iniciativa de quem conhecia bem a sua história: o então Presidente da República, Manuel Teixeira Gomes.
O tempo dos frutos secos e das conservas, base da sua economia durante tantos anos, deu lugar a nova indústria, baseada naquilo que tem de melhor: o sol e o mar. E hoje, Portimão, é um dos grandes centros do turismo em Portugal. À bacia do Arade – do topónimo fenício Arvad, que significa porto seguro – chegam navios de todo o mundo, atraídos pela luz meridional e por este mar quente de verão.
Finalmente, presos no olhar de adeus do poeta-pintor, “a Ponta do Altar, ao declinar do sol, é uma rocha de legenda, de iluminura heráldica, de brasão, toda de oiro puro” e “à noite, na ponte, com a lua cheia, o ar sereno, uma grande paz na água do rio, (…) o silêncio é absoluto: tudo emudece como num conto de fadas”.
Aqui, solto pelo mundo das sensações, Manuel Teixeira Gomes chega a confessar-se um homem “injustamente feliz, imprudentemente feliz!”.
*Fontes: “Agosto Azul*”, M.T. Gomes; “Regressos”, idem; “Inventário de Junho”, ibidem; “História do Condado de V. N. Portimão”, Nuno Campos Inácio: outras