O confiante Remco Evenepoel (Soudal Quick-Step) voltou este domingo a demonstrar que as profecias sobre o seu futuro velocipédico não foram manifestamente exageradas, ao conquistar pela terceira vez a Volta ao Algarve, um objetivo ‘denunciado’ num início de época fulgurante.
Aquele miúdo irreverente e desafiante, arrogante q.b (às vezes, até mais do que isso) que, em 2020, venceu todas as corridas por etapas em que participou, inclusive a Volta ao Algarve, não é mais o mesmo: hoje, a atitude do ultraconfiante belga é mais comedida, mais madura, as suas declarações são mais ponderadas, embora ainda tenham um ‘quê’ de autenticidade, cada vez mais rara num pelotão demasiado formatado, e também de mau feitio e atitudes impulsivas quando as coisas correm mal.
Evenepoel teve de ‘crescer’ à força, depois de uma horrenda queda na Volta à Lombardia – saiu em frente numa curva e caiu de uma ponte, para uma profunda ravina de cinco metros -, em agosto de 2020, o ter ‘atirado’ para uma cama de hospital e para uma longa convalescença (de oito meses) da fratura da pélvis que sofreu.
A carreira idílica daquele que, desde que apareceu, foi comparado ao ‘Canibal’ Eddy Merckx – algo que sempre abominou – sofreu um sério revés naquele dia e, desde aí o ciclista com cara de ‘teenager’ tem tido de lidar com a pressão adicional do escrutínio dos que veem em qualquer má jornada a prova de que a sua carreira nunca será aquilo que poderia ter sido, uma teoria descabida, fomentada pelos ‘haters’, que foi seriamente contrariada quando venceu a Vuelta2022.
As imensas dúvidas que pairavam sobre o seu futuro ‘pesaram’ na sua estreia numa grande Volta, o Giro2021, no qual prometeu muito (foi segundo da geral durante cinco etapas) e protagonizou momentos de tensão com o seu colega português João Almeida, antes de desistir, após a 17.ª etapa, na sequência de uma queda, numa altura em que já estava em evidente quebra física.
Remco (a fervorosa legião de fãs que tem em todo o mundo abdicou do seu apelido, assim como todos os seus colegas do pelotão) já há muito comprovou que as notícias sobre a ‘morte’ da sua carreira, ‘agudizadas’ por uma temporada de 2021 em que ganhou ‘apenas’ as voltas à Bélgica e à Dinamarca e conquistou a prata na prova de fundo dos Europeus e o bronze no ‘crono’ continental e mundial, foram manifestamente exageradas.
Antes de tornar-se hoje o segundo ciclista de sempre a vencer três Voltas ao Algarve, o jovem de apenas 24 anos, que Geraint Thomas apelidou carinhosamente de ‘little bastard’ (‘sacaninha’ numa tradução pouco literal), conquistou dois títulos mundiais, o de fundo (2022) e o de contrarrelógio (2023), e duas Liège-Bastogne-Liège e duas Clássicas de San Sebastián consecutivas (2022 e 2023).
Pelo caminho, no entanto, sofreu dois grandes ‘desgostos’: teve de desistir do Giro2023, quando envergava a ‘maglia rosa’ e já tinha vencido duas etapas, por ter contraído covid-19, e falhou clamorosamente a defesa do título na Volta a Espanha, sendo obrigado a reinventar-se – esteve em fuga inúmeros dias, venceu três etapas e a classificação da montanha e ainda foi eleito mais combativo.
Evenepoel é um fenómeno e o seu currículo precoce comprova-o: no ano de estreia no pelotão, e no espaço de apenas dois meses, venceu a Hammer Limburg, a Volta à Bélgica, foi terceiro nos campeonatos nacionais de contrarrelógio, triunfou na Clássica de San Sebástian e sagrou-se campeão europeu de ‘crono’ – em setembro, haveria ainda de tornar-se vice-campeão mundial da especialidade.
À ‘explosão’ de 2019, que lhe valeu o epíteto de novo Eddy Merckx e o prémio de desportista belga do ano (foi o primeiro ciclista a ser distinguido desde que o campeão olímpico de fundo do Rio2016, Greg Van Avermaet, recebeu o galardão), seguiu-se a consolidação na época de 2020, na qual conquistou a geral de todas as provas em que participou (San Juan, Algarve, Burgos e Polónia), antes de cair na Volta à Lombardia.
O mais curioso é que o jovem de Quick-Step Alpha Vinyl poderia nem ter sido ciclista; nascido em 2000, nos subúrbios de Bruxelas, Evenepoel começou a jogar futebol aos cinco anos e era tão talentoso que foi ‘captado’ pelas escolinhas do Anderlecht, antes de rumar aos neerlandeses do PSV Eindhoven.
O percurso bem-sucedido nos relvados do então lateral esquerdo levou-o à seleção nacional belga, que representou nos escalões sub-15, sub-16 e capitaneou por uma vez nos sub-17. Embora o seu potencial fosse mais do que (re)conhecido no futebol, o pequeno Remco (tem apenas 1,71 metros) decidiu seguir os conselhos do pai, o antigo ciclista profissional Patrick Evenepoel, que considerava que os atributos físicos do filho eram os de um campeão velocipédico.
O ‘salto’ para o ciclismo foi fulgurante: ganhou 34 das suas primeiras 44 corridas e, nos Mundiais de Innsbruck (2018), conseguiu algo inédito na modalidade, unindo o ouro no ‘crono’ de juniores ao título mundial de estrada, um feito alcançado apesar de uma queda e de uma demorada mudança de roda.
Com um palmarés tão impressionante, o primeiro contrato como profissional era uma questão de tempo. Como não poderia deixar de ser, a Deceuninck-QuickStep ofereceu-lhe em 2018 um lugar no ‘Wolfpack’.
O triunfo na Volta a Espanha desmistificou a ideia que seria incapaz de ganhar uma grande Volta, mas quase toda a gente ainda duvida que será capaz de lutar pela vitória no Tour, o grande desafio que traçou para esta temporada.
“Quero estar no pódio em Nice, qualquer que seja o lugar”, assumiu antes de vencer a Clássica da Figueira, com uma magistral exibição, no seu primeiro dia de competição nesta época – tem um registo 100% vitorioso em Portugal.
Texto Ana Marques Gonçalves, da agência Lusa
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