Quando tudo parecia encaminhar-se para a normalidade, uma variante veio alterar todos os planos de um Natal semelhante aos outros natais antes da covid-19. Isso deixa marcas indesmentíveis na saúde mental dos portugueses, que agora se sentem ansiosos e deprimidos por uma vez mais lhes ser negada a oportunidade de um regresso à normalidade. Este é um dos primeiros passos para sobreviver nesta fase: encarar os factos, reconhecer os sentimentos.
1.Parece que tudo voltou ao mesmo. Como ver a luz ao fundo do túnel desta longa pandemia?
Numa fase em que esperávamos que a nossa vida pudesse voltar à normalidade e à nossa rotina prévia à pandemia, houve de facto um retrocesso nas medidas restritivas. Mas na opinião da psicóloga clínica Renata Benavente importa ter um olhar positivo e perceber que se já passámos um processo semelhante, ajustámo-nos a essas dificuldades, e as coisas melhoraram, isso pode dar-nos a esperança que esta situação presente será de facto transitória e que voltaremos a uma vida com menos restrições. “Aliás, foi essa esperança que poderá ter sido o fator impulsionador para tanta gente ter aderido ao processo de vacinação. Foi visto como a tal luz ao fundo do túnel. Recordo que, em Portugal, temos uma taxa de vacinação elevada, as pessoas assimilaram muito bem essa mensagem. Neste momento, com esta nova variante e a implementação de novas medidas restritivas, as pessoas estão a sentir alguma zanga e desilusão depois de todo o esforço depois de terem aderido às medidas sugeridas. E afinal estamos a recuar na nossa rotina e liberdade também. O que está a gerar este sentimento de zanga e insatisfação que depois tem outro impacto importante que se prende com a saúde psicológica e o bem estar emocional das pessoas. E isso manifesta-se muito em ansiedade.”
E tudo pode ter mais impacto emocional e psicológico nesta altura específica das festas, do Natal, que são momentos em que, por norma, as pessoas estão ou querem estar com as suas famílias. E, por vezes, as pessoas com receio de poderem transmitir o vírus estão a evitar estar presencialmente com certos familiares mais frágeis ou a optar por reunir-se em grupos mais pequenos, o que também traz algum sofrimento associado. Sobretudo, porque as pessoas já passaram por isto no ano anterior. “E agora as queixas de ansiedade e depressão estão de facto a aumentar. Sobretudo para algumas pessoas mais vulneráveis, este tipo de condicionantes e limitações é de facto muito impactante”, esclarece a psicóloga. Por isso, é necessário que as pessoas mantenham as relações sociais por outras vias que não o contacto presencial. As pessoas que acabam por se isolar, podem entrar numa espiral e desencadear quadros psicopatológicos mais sérios. Ou seja, doenças mentais. A mensagem aqui é clara e positiva. “Devemos ser optimistas. O que importa destacar é que, na verdade, não voltou tudo ao mesmo porque esta variante [apesar de muito contagiosa] não é tão patogénica e as medidas não são tão restritas como foram. Temos grande parte da população vacinada. Pessoas muito vacinadas provavelmente não terão um desenvolvimento de gravidade da doença. Os números de infetados deverão aumentar muito nas próximas semanas. Mas a maioria não desenvolverá doença grave, nem resultará em mortalidade.”
2. Reconheça que os sentimentos de zanga, frustração, desilusão e tristeza desta época são normais.
É natural e legítimo que haja estes sentimentos de zanga, tristeza, frustração e desilusão. E é importante que aceitemos isso. Porque quando pensávamos estar a ultrapassar esta crise pandémica, recuámos. O cenário voltou a ser semelhante ao ano passado. A vice-presidente da OPP é da opinião que se reconhecermos estes sentimentos somos mais capazes de agir para os ultrapassar. “Quando consigo refletir que estou triste, com pouca vontade de fazer as coisas, essa constatação e reflexão dá-me ferramentas para lidar com isso de forma ajustada. E, eventualmente, de criar um processo de pedido de ajuda, de partilha dessas dificuldades.” Nesse sentido, a psicóloga afirma que é importante que as pessoas desabafem as suas angústias com as pessoas mais chegadas, amigos ou família. Porque o processo de falar sobre as emoções pode aliviar e ser útil. “Colocar os pensamentos em palavras é um mecanismo muito importante, que utilizamos até como ferramenta terapêutica. Pode diminuir alguns sentimentos de culpa que às vezes surgem e ajudar a ultrapassar as dificuldades.”
Renata Benavente aponta para outro lado benéfico desta partilha do sofrimento emocional com as pessoas mais próximas. Por norma estas pessoas que nos escutam, também nos devolvem por norma não só um apoio emocional, como apoio instrumental na execução de algumas tarefas que ajudam na gestão da vida diária. “Por exemplo, uma mãe que esteja sobrecarregada com uma série de tarefas, entre teletrabalho e gestão de filhos em casa. E falo disto, porque as mulheres têm sido muito penalizadas. E são dos grupos que mais dificuldades têm apresentado neste contexto, pelo que observo no consultório. Se elas falarem sobre isto e assumirem que estão irritadas, zangadas, por não conseguiram dar conta de tudo, o desabafo pode até potenciar o apoio de alguém externo, seja uns avós e tios, que as alivie um pouco carga que estejam a viver. Ou seja, não falar sobre isto, sobre os problemas, pode contribuir para agravar o problema e impossibilitar que outras pessoas disponibilizem ajuda.”
A psicóloga faz, no entanto, uma ressalva. Quando os problemas e o nosso nível de sofrimento interfere com o nosso funcionamento dito normal passa a ser um alerta de que uma ajuda externa é necessária. “Quando ficamos impossibilitados de desenvolver a nossa atividade profissional com a produtividade que tínhamos, quando não conseguimos retirar prazer com atividades que nos davam prazer, quando mostramos constante irritação, falta de paciência na relação com os outros, quando nos isolamos. São um tipo de indicadores que, quando prolongados no tempo, impactam significativamente a vida, podem ser preocupantes e requerer uma avaliação de profissionais de saúde, nomeadamente da parte de um psicólogo.
E, curiosamente, são muitas vezes a pessoas que nos rodeiam, amigos ou colegas de trabalho, que assinalam e identificam o problema: “Olha tu estás muito irritado/a. Muito tenso/a. Não eras assim. O que se está a passar?”. A psicóloga sublinha que importa valorizar a perspetiva dos outros, o que para algumas pessoas isso pode ser difícil. “Principalmente para aqueles que não têm essa capacidade tão desenvolvida de introspecção e auto análise de refletir as suas próprias emoções e de as valorizar.”
3. Neste Natal em pandemia, quem não tem família próxima (ou não tem uma boa relação com ela) como deve escapar ao sentimento de solidão?
Se para algumas pessoas que não têm boas relações com a família, não passar com elas pode até ser um momento de alívio, há quase sempre uma ambivalência, um sentimento de culpa, de tristeza, frustração e solidão. “Porque há este lado idealizado de que esta época devia ser vivida com o contexto familiar perfeito e há desconforto quando se sente que a própria família não dá esse ambiente em que nos sintamos bem, o que provoca frustração”, comenta a psicóloga.
Para evitar este sentimento de solidão, é importante que se faça uma aproximação aos amigos mais estimados, deixando de lado a ideia de que serão um fardo para os outros, e passar a valorizar e aceitar os convites nesta época que nos são feitos, por exemplo, por pessoas amigas. “Devemos colocar de parte essas fantasias de que somos um peso para os outros. É certo que na nossa cultura o Natal é um momento da família. Mas podemos alterar esse paradigma e perceber que o Natal é, acima de tudo, um momento de afeto e de convívio com quem nos quer bem e pode ser também para estar com os amigos, que também são família. às vezes são até mais significativos e importantes do que a própria família.”
Renata Benavente chega a sugerir que olhemos em nosso redor, para a nossa rede de relações sociais, para fazermos o exercício de pensar quais as pessoas que eventualmente não vão passar estes dias com a família, que vão passar sozinhos e, se fizer sentido, desafia quem possa e queira a convidar para a ceia ou almoço de Natal, essas amizades. Se o contexto permitir. Que poderá ter bonito significado e impacto emocional positivo.
4. Mantenha rotinas saudáveis.
Para bem estar psicológico e emocional é importante que mantenha as rotinas de sono, faça exercício físico, que cumpra as rotinas de alimentação da forma mais saudável possível. E quanto a este ponto, sabemos bem que na altura do Natal e das festas, alguns excessos são quase inevitáveis. Mas devemos evitar sempre que possível os excessos na alimentação e no consumo do álcool. A vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses alerta para a importância de todas as rotinas, mesmo as mais pequenas, desde que acordamos. “Todos os dias ao acordar, mantenham a vossa higiene, vão um bocadinho à rua. Isso acaba por nos levar a ter uma atenção connosco próprios. O que acontece quando a pessoa não tem estas rotinas? Há uma espécie de descuido, passa a ficar de pijama o dia todo, deixa de se se arranjar e descuida-se em tudo. É saudável e essencial manter essa estrutura e hábitos para o nosso bem estar psicológico. Precisamos disso. E, claro, de manter a comunicação e contacto social com os outros. Seja com amigos, família ou colegas de trabalho.”
Renata Benavente aborda aqui ainda a complexidade, nesta fase de festas, crianças em casa e teletrabalho, de se conseguir fazer a transição entre trabalho e lazer. Uma dificuldade partilhada tanto pelos adultos, como pelas crianças. “Estávamos habituados ao espaço doméstico como espaço de lazer e não também como posto de trabalho. E a gestão torna-se difícil. Por isso é importante tentar estabelecer uma rotina e estabelecer horários de trabalho, para desligar das tarefas profissionais a determinada hora. Porque esta sobrecarga tem um impacto sério na nossa saúde psicológica. E sabemos disso com muito rigor.”
5. Se nesta época, estiver em particular sofrimento psicológico, peça ajuda!
Não hesite em pedir ajuda profissional se estiver em grande sofrimento psicológico. A saída do sofrimento nunca é calar e ficar em silêncio. Importa partilhar as angústias com as pessoas amigas em redor ou recorrer a um profissional especializado se necessário. Porque todos nós ao longo da vida vamos ter períodos difíceis em que podemos beneficiar dessa ajuda externa. É normal que isso aconteça. Renata Benavente sublinha que reconhecer as dificuldades que se está a passar é altamente positivo. “O movimento de pedir ajuda é importante e deve ser valorizado e reconhecido. É um primeiro passo para transformar algo que não está bem connosco e com a nossa vida. Felizmente o estigma associado aos pedidos de ajuda aos psicólogos tem vindo a diminuir muito. As pessoas já partilham da visão: procurar um psicólogo não significa necessariamente que se está com um problema sério mental, mas que é algo necessário para um apoio ou reflexão adicional com ajuda de um especialista que ajudará a que nos sintamos melhor connosco próprios e com os que nos rodeiam.”
Recorde-se que desde o início da pandemia foi criada uma linha telefónica de aconselhamento psicológico associado ao SNS 24 (808 24 24 24). “É fácil. A pessoa liga para o número e fala com um especialista que dá uma orientação, faz uma avaliação e triagem. E, eventualmente, dá recomendações ou encaminha para uma resposta mais especializada que ajude a pessoa a ultrapassar as suas dificuldades e vulnerabilidades.”
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL