As urgências hospitalares do Algarve voltaram a ser notícia depois de uma investigação divulgada esta sexta-feira pela SIC, que trouxe a público alegadas incompatibilidades laborais de um médico cirurgião geral do Norte, o então diretor-executivo do Serviço Nacional de Saúde (SNS), António Gandra D’Almeida. Segundo a mesma estação televisiva, o médico terá acumulado, durante mais de dois anos, as funções de diretor do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) na região Norte com a prestação de serviços (como “tarefeiro”) nos serviços de urgência dos hospitais de Faro e Portimão, recebendo, através de uma empresa constituída com a sua mulher, mais de 200 mil euros por turnos realizados no Algarve.
A informação causou uma onda de reações e culminou no pedido de demissão imediata de António Gandra D’Almeida do cargo de diretor-executivo do SNS, demissão essa aceite pela ministra da Saúde, Ana Paula Martins, também durante a noite de sexta-feira. Numa nota divulgada pelo próprio, Gandra D’Almeida considerou que a reportagem da SIC “contém imprecisões e falsidades que lesam” o seu bom nome, mas, apesar disso, entendeu que sair seria a melhor forma de “proteger” a sua família e o SNS.
O foco no Algarve e os turnos acumulados
O cerne deste caso, que gera uma particular atenção no Algarve, prende-se com o facto de, segundo a SIC, a acumulação de cargos exercidos por António Gandra D’Almeida ser considerada incompatível à luz da lei. A reportagem indica que, em paralelo às suas funções de diretor do INEM do Norte (sedeado no Porto), o médico trabalhava como prestador de serviços nas urgências de Faro e Portimão, o que não seria permitido sem autorização expressa e cumprindo condições estritas (neste caso, a alegação é de que teria de o fazer sem auferir qualquer vencimento adicional).
Contudo, ainda segundo a SIC, o clínico terá recorrido a uma empresa criada com a sua mulher para emitir faturas pelos turnos realizados no Algarve. De acordo com a mesma fonte, “essa sociedade, gerida por Gandra D’Almeida, teria faturado um total superior a 200 mil euros relativos a turnos de urgência”.
A investigação televisiva suscitou de imediato a atenção de vários órgãos de comunicação social e de entidades representativas dos profissionais de saúde, lançando luz sobre as condições de trabalho e contratação de médicos tarefeiros (também designados “prestadores de serviços”) nos hospitais algarvios. Estes últimos, especialmente no verão, costumam enfrentar uma elevada procura, seja pela chegada de turistas ou pelo aumento das populações sazonais. A insuficiência de médicos em determinados períodos leva as unidades de saúde a recorrer a profissionais externos para garantir a resposta necessária.
Demissão e reações políticas
Pouco tempo após a divulgação das denúncias, veio a público o pedido de demissão do médico do Norte, António Gandra D’Almeida. A ministra da Saúde confirmou, em comunicado citado pela Lusa, ter aceitado essa demissão:
“Atendendo às circunstâncias e à importância de preservar o SNS, a Ministra da Saúde aceitou o pedido de demissão. O novo diretor executivo do SNS será anunciado nos próximos dias.”
Entretanto, várias personalidades e estruturas da área da saúde tomaram posição. A Federação Nacional dos Médicos (FNAM), por exemplo, considerou que a demissão do diretor do SNS demonstra o “desnorte” do Ministério da Saúde, liderado por Ana Paula Martins. Em declarações à Lusa, Joana Bordalo e Sá, presidente da FNAM, lamentou “este tipo de situações” e sublinhou a necessidade de escolher responsáveis “com competência técnica e sem conflitos de interesse”.
Também o bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, pediu uma substituição “muito rápida” para que o SNS não fique sem liderança operacional, salientando que o novo diretor deve ser um perfil técnico. Em declarações à mesma agência noticiosa, o bastonário vincou ainda que os desafios no SNS “exigem uma liderança forte para resolver os problemas”.
Repercussões na Assembleia da República
O caso gerou igualmente debate político. O Bloco de Esquerda (BE) anunciou a intenção de requerer uma audição parlamentar urgente tanto do diretor demissionário quanto da ministra da Saúde. Num comunicado citado pela Lusa, o BE questiona:
“Como foi possível fazer esta acumulação de funções e de vencimentos, lucrando cerca de 200 mil euros com a prestação de serviços ao SNS, e ser, depois disto, nomeado para diretor-executivo do mesmo SNS com total confiança por parte da ministra?”
O partido sublinhou ainda a necessidade de esclarecer como se processou a escolha do médico militar, com funções de chefia no INEM do Norte, para dirigir o SNS. Outras forças políticas, como a Iniciativa Liberal (IL) e o Chega, também se manifestaram, criticando o que consideram ser falhas graves do Governo na área da saúde.
Uma segunda demissão em menos de um ano
Esta não é a primeira vez que a Direção Executiva do SNS fica vaga num curto espaço de tempo. Em abril de 2024, Fernando Araújo, então diretor executivo, tinha-se demitido, alegando não querer ser um obstáculo às políticas do Governo. O Ministério da Saúde anunciaria, a 22 de maio de 2024, a escolha de António Gandra D’Almeida para suceder a Fernando Araújo, com o Conselho de Ministros a aprovar formalmente a designação no mês seguinte.
Com a recente demissão, o SNS volta a ficar sem liderança executiva e aguarda, portanto, uma nova nomeação. Entretanto, vozes como a do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) lamentam a “instabilidade na direção-executiva do SNS, numa fase em que é preciso levar por diante a reforma em curso”.
O papel do INEM do Norte e a questão das incompatibilidades
A preocupação central, expressa por diversas entidades, reside na aparente facilidade com que se procedeu à acumulação de funções no INEM do Norte e nos hospitais algarvios. A SIC, na sua reportagem, adiantou que, embora o INEM “lhe tivesse dado uma autorização com a garantia de que não ia receber vencimento”, a prestação de serviços, afinal, era faturada através de uma empresa privada, pertencente ao próprio e à sua mulher.
A lei que regula o estatuto do pessoal dirigente da administração central, regional e local do Estado estabelece limites claros quanto a remunerações acessórias e incompatibilidades. Muitos questionam agora de que modo foi possível que tais restrições não tivessem sido aplicadas ou que passassem despercebidas, sobretudo num setor tão escrutinado como o da saúde.
O impacto nas urgências de Faro e Portimão
Em termos locais, no Algarve, o debate sobre este caso acentua algumas preocupações relacionadas com a carência de profissionais nos hospitais de Faro e Portimão. Com o grande afluxo de pessoas e a pressão sazonal no verão, as equipas locais recorrem frequentemente a tarefeiros para suprir necessidades imediatas. Não é de hoje a elevada despesa associada à contratação de prestadores de serviços — assunto que, ciclicamente, vem à baila quando surgem notícias sobre vencimentos de médicos tarefeiros que ultrapassam largamente os valores salariais praticados no SNS.
A ser verdadeira a faturação de 200 mil euros em dois anos — o que a própria investigação noticiosa atribui a “vários turnos” no Algarve —, o valor reflete a dificuldade endémica de fixar pessoal médico na região. De acordo com relatos de profissionais de saúde ouvidos em outras ocasiões pelo POSTAL, a escassez de alojamento acessível e as distâncias dentro do distrito são alguns dos fatores que dificultam a permanência de médicos nos quadros regulares, reforçando a dependência de tarefeiros.
Declarações finais e horizonte de esclarecimento
Na nota de demissão enviada à comunicação social, António Gandra D’Almeida sublinha que as alegações divulgadas pela SIC dizem respeito à sua “atuação profissional nos anos que precederam o exercício de funções como diretor executivo do SNS — 2021, 2022 e 2023”. Ao classificar a reportagem como contendo “imprecisões e falsidades”, realça que tais imputações “lesam” o seu bom nome.
A ministra da Saúde, Ana Paula Martins, elogiou a competência e o esforço realizados pelo médico demissionário, frisando ainda esperar que “a situação se esclareça no mais breve prazo”. Enquanto isso, a Federação Nacional dos Médicos, o Bloco de Esquerda e outras entidades exigem investigações rigorosas para perceber se houve ou não irregularidades, e até que ponto esses factos eram ou não do conhecimento das instâncias superiores no momento da nomeação para a Direção Executiva do SNS.
As atenções permanecem agora voltadas para o Ministério da Saúde, que promete anunciar “nos próximos dias” o novo titular da Direção Executiva do SNS. Tanto no contexto nacional como, em particular, no Algarve, mantém-se a expectativa de que sejam tomadas medidas estruturais no setor, para evitar que se repitam situações que suscitem dúvidas sobre ética, legalidade ou transparência na gestão dos recursos humanos e financeiros do SNS.
No Algarve, em especial nos municípios que acolhem hospitais com grande procura — como Faro e Portimão —, as contratações de tarefeiros continuarão sob vigilância, já que, como alguns profissionais e sindicatos têm referido, este esquema de prestação de serviços não constitui solução de fundo para as fragilidades do sistema público de saúde.
Em resumo, o caso do médico do Norte que, alegadamente, recebeu mais de 200 mil euros em turnos no Algarve tornou-se central no debate político e mediático de 2025, desencadeando uma demissão de alto nível no SNS e trazendo à tona a discussão em torno das dificuldades para fixar profissionais na região. Até ao fecho desta notícia, o Ministério da Saúde ainda não tinha divulgado oficialmente o nome do sucessor de António Gandra D’Almeida, mas já é certo que o processo de escolha será acompanhado de perto, tanto pelas estruturas sindicais como pelas diferentes forças políticas, cujos pedidos de audições e esclarecimentos urgentes refletem a magnitude do problema.
Para já, mantém-se a expectativa de que a anunciada investigação às alegadas incompatibilidades e ao volume de vencimentos pagos possa esclarecer se houve efetiva violação da lei e, em última análise, contribuir para uma maior transparência em todo o processo de contratação no SNS, particularmente no que toca ao recurso a médicos tarefeiros no Algarve.
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