Nelson Santos tem uma funerária na capital, junto à avenida da Igreja, a artéria lisboeta que por estes dias ostenta o nome de um local que, à velocidade da pandemia, passou de quase obrigatório a proibido para funerais e cerimónias fúnebres.
“Mudou quase por completo o que são as cerimónias fúnebres habituais, quer com as famílias, quer connosco. Prestar a homenagem, transportar a urna à igreja para velório, tudo isso neste momento terminou. Os nossos cuidados estão muito mais redobrados. Fazemos tudo 100% atentos. O nosso pessoal tem que andar com equipamento de proteção individual”, disse à Lusa Nelson Santos.
Nelson Santos disse que por estes dias os agentes funerários são muito mais do que isso. Com a comunicação reduzida ao mínimo entre hospitais e familiares dos doentes, são muitas vezes as funerárias que acabam por dar a notícia à família de que a morte pode ter acontecido por covid-19 e não por questões de saúde pré-existentes e que até podem ter estado na origem do internamento.
Têm sido, por vezes, as únicas pessoas presentes nos funerais, fazendo a vez de familiares e amigos quando estes não podem estar.
Foi o caso de uma jovem de cerca de 30 anos que morreu de cancro e foi sepultada no cemitério de Benfica apenas na presença dos funcionários da agência funerária e dos coveiros, que antes da descida à terra rodearam o caixão, baixaram a cabeça e por uns momentos fizeram silêncio.
“A pessoa quase que é sepultada como indigente. O formato é este, tal e qual”, disse Nelson Santos à Lusa, explicando que no caso desta jovem os seus familiares mais próximos em Portugal tinham mais de 70 anos, pelo que foram aconselhados a não marcar presença, e que outros familiares no estrangeiro, pelas restrições de voos, não chegariam em tempo útil.
Foi “com algum custo” que os familiares aceitaram a ausência na despedida e os agentes funerários tiveram também aqui que ser mais do que isso.
“Também somos um pouco psicólogos no meio de uma perda. Tentamos consolar as pessoas como podemos”, disse, explicando que isso também se faz com um custo pessoal.
“Claro que não somos de ferro. Também nos custa passar por estas situações. Também temos família”, acrescentou.
Aconselhar tem sido uma das principais funções nas últimas semanas, com as famílias a deixar cada vez mais nas mãos das agências a responsabilidade de decidir o formato do funeral, impor a ausência de velório, por muito restrito que seja, e outras ausências que ainda há algumas semanas seriam consideradas imprescindíveis, sobretudo em meios rurais.
“Se calhar aqui na cidade conseguimos sugerir que nem sequer uma hora vá à igreja, porque há muitas pessoas que querem ir à igreja. Nos meios interiores ainda custa um bocadinho às pessoas interiorizar que não é possível fazer aquele funeral tão habitual, com o padre, com a irmandade, com a cruz, ir à igreja e fazer o velório toda a noite. Isto ainda cria alguma confusão na cabeça das pessoas. Hoje em dia já não vão os amigos, os vizinhos, os familiares que estão mais longe. Hoje em dia é complicado”, disse.
A experiência mostrou-lhe que as pessoas não reagem à perda todas da mesma maneira, que há os mais emotivos e os mais frios, os quase indiferentes, mas não deixa de ser uma experiência feita de presenças. Não poder estar presente nem deixar estar presente ainda custa, mas, disse Nelson Santos, parece que cada vez menos.
“As pessoas quando saem do cemitério caem em si e dizem que tudo isto que está a acontecer não devia acontecer e que não conseguiram prestar a última homenagem como queriam fazer. Não as sinto revoltadas por não o poder fazer. Sinto um lamento, porque as pessoas tinham essa expectativa. Acho que se começam a conformar com tudo isto”, disse.
A pandemia aguçou a suspeita e para a sua funerária todos os óbitos são agora tratados como óbitos por covid-19, até porque há corpos recolhidos em casa e em lares de terceira idade que não foram testados e para os quais não existe qualquer confirmação da causa da morte. O tratamento indiferenciado que assume o pior cenário protege funcionários, as suas famílias e as famílias dos mortos, explicou.
No início, disse, ainda havia uma separação em alguns hospitais no tratamento de corpos de doentes de covid-19 e outros doentes, permitindo-se, quando não se tratava de uma morte pelo novo coronavírus, o habitual manuseamento e vestir o cadáver. Agora já não.
Quando se apercebeu da proporção que a pandemia estava a assumir em Espanha decidiu agir e não ficar à espera, optando por comprar muito equipamento de proteção que é agora a salvaguarda e o “novo normal” dos seus funcionários, que, pela especificidade das suas funções, trabalham com receio.
Fatos brancos de corpo inteiro de proteção contra contaminação biológica, máscaras com o mesmo objetivo e que cobrem todo o rosto, luvas em cima de luvas e sapatos cobertos são a nova farda de trabalho. Depois há o isolamento dos corpos, que começa nos hospitais.
“Os hospitais agora entregam os corpos todos dentro dos sacos, selados, e não há possibilidade de voltar a abrir o saco ou a urna, nem no hospital nem no cemitério”, disse.
Os procedimentos que agora são rotina eram um mistério por desvendar nos primeiros tempos da epidemia, disse à Lusa Nelson Santos, que afirmou que “os primeiros dias foram os piores” e que sentiu nas primeiras duas semanas falta de informação oficial e até acompanhamento por parte de autoridades como a Direção-Geral da Saúde (DGS) e do Ministério da Saúde.
O primeiro funeral de um doente de covid-19 foi tratado com base no conhecimento que tinha sobre o que faziam outras funerárias, em países que já iam numa fase mais avançada da pandemia.
As normas sanitárias entretanto emitidas pela DGS “são adequadas”, mas Nelson Santos critica, no entanto, algumas incongruências legais como a proibição de cerimónias religiosas em igrejas, mas não de velórios nas capelas mortuárias dos cemitérios, o transporte de corpos a partir dos domicílios quando não existe confirmação médica de covid-19, entre outras “aberturas” na lei que entende que deviam ser alvo de restrições para evitar arbitrariedade.
Algumas agências, disse, “ainda facilitam” e continuam a trabalhar de forma “muito simplória” e sem perceber “as consequências de lidar com corpos com este problema”, mas outras, se trabalham com o equipamentos mínimos, como batas cirúrgicas e apenas uma máscara de proteção é porque não conseguiram encontrar material disponível no mercado ou o que encontram está a ser vendido a “preços exorbitantes”.
O novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já infetou mais de 1,3 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais morreram mais de 73 mil.