Lula da Silva recebeu do povo brasileiro o maior número de votos de sempre numa segunda volta de eleições presidenciais, mas, ao mesmo tempo, esta é a eleição mais renhida de sempre, com uma diferença inferior a dois pontos percentuais face a Bolsonaro.
Antes de tudo mais, Lula agradeceu a Deus, quase como se quisesse lembrar os apoiantes de Bolsonaro, que fez da religião e de um alegado ataque à fé uma das principais bandeiras da campanha, que este novo Presidente é católico. “Em primeiro lugar eu quero agradecer a Deus. Ele foi muito generoso comigo, para permitir que eu saísse de onde saí e chegasse aonde cheguei”. E até falou de ressurreição: “Eu me considero um cidadão que teve um processo de ressurreição na política brasileira porque tentaram enterrar-me vivo, e eu estou aqui”.
Lula da Silva, eleito este domingo pela terceira vez para a presidência do Brasil, fez um discurso de união, com poucas críticas diretas ao seu oponente, mais focado naquilo que quer fazer do que naquilo que Bolsonaro fez, ainda que isso também tenha aparecido aqui e ali, de forma metafórica ou por meio de avisos.
A crítica mais direta apareceu logo no início. “Nós não enfrentámos um candidato, enfrentámos a máquina do Estado brasileiro colocada ao serviço de um candidato”, disse, numa referência ao que muitos na oposição a Bolsonaro consideram ser a marca mais prejudicial do seu Governo para a democracia no Brasil: a instrumentalização dos organismos do Estado.
“A ninguém interessa viver num país dividido, em permanente estado de guerra. Este país precisa de paz e união. Este povo está cansado de enxergar no outro o inimigo. É hora de baixar as armas que jamais deveriam ter sido empunhadas. As armas matam, e nós escolhemos a vida”. E reforçou: “Esta não é uma vitória minha nem do PT nem dos partidos que me apoiaram, é a vitória de um enorme movimento democrático que se formou acima dos partidos políticos e dos interesses pessoais, das ideologias, para que a democracia saísse vencedora”.
Apesar de ter dito que vai governar para todas as brasileiras e brasileiros e não apenas para aqueles que votaram no seu projeto, esta vitória de Lula não se pode classificar como esmagadora. Na realidade, é a mais estreita de sempre: com Com 99,99% das secções de voto apuradas, Lula soma 60.345.825 votos (50,90%), contra 58.206.322 de Bolsonaro (49,10%).
Antes desta eleição, tinha sido a de 2014, entre Dilma Rousseff, também do PT, e Aécio Neves (Partido da Social-Democracia Brasileira) a mais aproximada. A “petista” ganhou a segunda volta com 51,64% dos votos, contra 48,36% de Neves, uma diferença de 3,28 pontos percentuais.
A diferença entre Lula e Bolsonaro, de 1,8 pontos percentuais, não vai conseguir anular, só por si, a polarização que tem caracterizado a política brasileira nos últimos anos. E o candidato da esquerda garantiu neste discurso que tem noção das dificuldades: “Estou aqui para governar esse país numa situação muito difícil. Mas tenho fé que, com a ajuda do povo, nós vamos encontrar uma saída para que esse país volte a viver democraticamente, harmoniosamente. E para que a gente possa restabelecer a paz entre as famílias, os divergentes, para que a gente possa construir o mundo que nós precisamos, e reconstruir o Brasil”, afirmou Lula no seu primeiro discurso como Presidente eleito.
Uma das partes que mais aplausos mereceram da plateia foi aquela em que Lula elencou, e a lista foi extensa, as coisas que o povo brasileiro escolheu, ao escolhê-lo a ele como Presidente: “O povo brasileiro deixou claro que deseja mais e não menos democracia; o povo brasileiro deseja mais do que o direito sagrado de escolher quem vai governar a sua vida, quer participar das decisões do Governo; o povo brasileiro deseja mais liberdade, igualdade, fraternidade no nosso país; deseja mais do que protestar que está com fome, quer ter saúde, educação, boas políticas públicas; quer ir ao teatro, ver cinema, ter acesso aos bens culturais, quer ter de volta a esperança, é assim que eu entendo a democracia, não apenas como uma palavra bonita inscrita na lei, mas como algo palpável que sentimos na pele e podemos construir a cada dia”.
A questão da pobreza e da fome, dois flagelos que muito provavelmente contribuíram para esta eleição de Lula como nos outros anos tinham contribuído para a sua eleição, também ocuparam um capítulo de destaque no discurso. Lula disse que o primeiro desafio é combater a pobreza, porque “milhões não podem não ter o que comer”. Toda a gente deve poder “tomar o café da manhã, o almoço e o jantar” e ter onde dormir. Por isso mesmo, Lula promete recomeçar o programa “Minha casa, minha vida”.
A última parte do discurso ficou reservada para a política externa. Lula diz que quer ajudar a combater a fome no mundo, a desigualdade e as alterações climáticas. Pediu também que as pessoas se lembrem de quando o Brasil era aberto ao mundo “O mundo sente saudade do Brasil soberano, que falava de igual para igual com os países ricos e apoiava o desenvolvimento dos países mais pobres”, disse Lula. “Hoje estamos dizendo ao mundo que o Brasil está de volta e é grande demais para ser relegado a este triste papel de pária do mundo”, disse ainda. “Vamos reconquistar a credibilidade, previsibilidade e estabilidade para que os investidores retomem a confiança no Brasil — que deixem de ver o país como fonte de lucro imediato e predatório”.
No fim, Lula prometeu “enfrentar sem trégua” o racismo e a discriminação para que “brancos, pretos e indígenas tenham as mesmas oportunidades”. Sobre a proteção do ambiente e sobre a Amazónia, Lula reservou algumas das frases fortes do discurso. “Um rio de águas límpidas vale mais que todo ouro extraído”. E quando uma criança indígena morre, “parte da Humanidade morre com ela”.
Também o diálogo “entre povo e Governo” deve ser retomado. E prometeu que as grandes decisões políticas “não serão tomadas em sigilo, na calada da noite”, mas depois de um “amplo diálogo em sociedade”.
É a primeira vez que o Brasil elege um mesmo Presidente pela terceira vez.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL