A recente reeleição de Emmanuel Macron em França confirma a minha convicção de que é imperioso infletir os termos da equação em que labora atualmente a União Europeia, o mesmo é dizer, de recolocar a polity, a policy e a politics europeia no horizonte de uma estratégia 2030 revista e no quadro de um Ato Único de revisão dos tratados europeus. Esta revisão é imposta pelas grandes transições em curso, a saber, os impactos das alterações climáticas, a nova matriz energética e a política de reindustrialização, uma condicionalidade mais estrutural em matéria de política económica e financeira, um novo pacto para as migrações, uma revisão profunda do conceito e do dispositivo de segurança e defesa e os impactos dos novos alargamentos face à iminência de uma guerra fria na fronteira leste europeia. Tudo isto, que é muito, só parece possível através de um reajustamento dos tratados europeus, porventura, por via de um Ato Único Europeu de inspiração federal.
Os problemas pendentes em 2022 e as estratégias de revisão em aberto
A Europa passará nesta década por grandes transições e, neste contexto tão congestionado, agravado pela pandemia e pela guerra, tudo pode acontecer. As crises podem suceder-se, assim como a multiplicação de regimes de exceção para lidar com a situação de cada Estado membro, em particular, devido às dividas acumuladas durante a pandemia e aos efeitos das sanções da guerra da Ucrânia. Falo de crises de ajustamento na zona euro, acidentes devidos às alterações climáticas, novas crises pandémicas, crises cibernéticas em consequência de ciberataques e biopirataria, crises socio-laborais devido à transformação digital, crises geopolíticas na fronteira leste europeia, mas, também, pelos novos alargamentos (países balcânicos e Ucrânia), crises políticas domésticas precipitadas pelo populismo radical e com repercussões sérias no plano internacional. Todas estas crises desencadeiam choques assimétricos sobre as sociedades europeias e, se assim for, a tentação de sair da zona euro e, mesmo, da União poderá crescer todos os dias. Num contexto tão congestionado e de difícil administração, como lidar com as consequências assimétricas destas crises recorrentes? No horizonte 2030 está em causa na União Europeia um equilíbrio delicado entre soft power e hard power, uma via muito estreita entre cooperação intergovernamental e integração supranacional que poderá conduzir a uma revisão dos tratados europeus.
Perante a explosão de acontecimentos durante a década três vias ou estratégias políticas estão em aberto: absorver e normalizar os impactos dos acontecimentos sobre as estruturas numa linha mais conservadora, aproveitar os impactos dos acontecimentos sobre as estruturas para causar disrupção e reforma das instituições numa linha de inspiração mais federal, por último, aproveitar os impactos dos acontecimentos sobre as estruturas para continuar a operar acréscimos marginais na polity europeia fora e dentro dos tratados numa linha mista de cooperação intergovernamental e integração setorial.
Os elementos de uma polity europeia de inspiração federal
Como disse, durante este período de programação plurianual 2030 é imperioso que a União Europeia faça uma inflexão nos termos da equação política europeia. Neste momento e na atual conjuntura falta profundidade e espessura ao projeto europeu, mas falta, também, a tranquilidade e o consenso que são necessários para promover uma revisão da polity europeia de inspiração mais reformista. Acresce que os sucessivos alargamentos (Turquia, países balcânicos e Ucrânia), bem como, a relutância de alguns estados- membros não são de molde a criar as condições políticas favoráveis a esta revisão da polity europeia. Apesar de tudo, creio que se justificariam plenamente algumas destas propostas:
– Um governo europeu, com duas câmaras no Parlamento Europeu – uma câmara alta em representação dos estados e uma câmara baixa em representação dos cidadãos europeus – e um executivo,
– Uma procuradoria geral europeia (já em funcionamento),
– Um Conselho de Segurança Europeu que aplique o novo conceito estratégico de segurança e defesa europeia,
– Um Banco Central Europeu com competências mais alargadas de natureza federal,
– Um Tesouro Europeu com competências de emissão e mutualização de euro-obrigações,
– Um Orçamento Federal com recursos próprios acrescentados por via de tributação europeia, no quadro de uma nova condicionalidade macroeconómica e com vista a uma perequação territorial reforçada,
– Uma Autoridade Europeia de Supervisão Financeira dos mercados de capitais,
– Uma Autoridade Europeia para as Migrações,
– Uma Autoridade Europeia de Regulação dos Mercados no quadro das grandes transições em curso e da nova política de reindustrialização.
Reconheço as dificuldades do empreendimento político aqui proposto, um equilíbrio mais ambicioso entre soft power e hard power, mas talvez possamos lá chegar pela via tipicamente comunitária, a saber, os pequenos passos, os acréscimos intergovernamentais, a maior discrição possível, a abordagem hors-traités.
Os elementos de uma policy europeia de inspiração federal
Vejamos, agora, o que poderia ser conseguido através da policy europeia numa linha de inspiração mais federal e, talvez, no quadro de um novo Ato Único Europeu:
– Em primeiro lugar, os princípios operativos de uma união orçamental: com base em recursos tributários próprios e de acordo com uma lei de enquadramento orçamental que determinaria a natureza federal do regime orçamental, bem como, o reforço substancial do capital do BEI para acrescer o efeito de alavancagem junto do mercado de capitais e o alargamento das suas competências como instrumento financeiro da estratégia 2030;
– Em segundo lugar, a monetarização federal da União Europeia: o que pode significar, no contexto atual, reconsiderar a dívida pública dos Estados membros na posse do BCE sem o qual não haverá meios suficientes para levar a cabo as grandes transições de uma forma harmoniosa e equilibrada durante a próxima década;
– Em terceiro lugar, um New Deal Europeu de construção de redes de interligação europeias: na linha do que propõe o pacto ecológico, o plano de ação digital, mas, também, um novo programa europeu para a saúde pública e a segurança europeia, isto é, tudo o que diga respeito às redes de investimentos inteligentes, sustentáveis e inclusivos; uma Agência Federal para o Crescimento e o Emprego poderia traçar uma linha de equilíbrio de longo prazo e, em consequência, acalmar os mercados financeiros e o respetivo custo de acesso ao capital;
– Em quarto lugar, é fundamental consagrar uma verdadeira política de cidades e cooperação territorial descentralizada: que as cidades inteligentes e criativas sejam não apenas uma simples máquina digital ao serviço de uma certa ideia ultra moderna de cidade, mas, também, um instrumento de solidariedade social e que, dessa política de
cidades, faça parte, também, uma ajuda internacional às redes de cidades pequenas e médias como instrumento fundamental de mutualização de bens e serviços comuns nos países mais pobres e em desenvolvimento
Nota Final
A economia-mundo, com uma malha cada vez mais apertada, atingiu um tal grau de interdependência e interação que qualquer vetor desencadeia de imediato efeitos de ricochete. A covid 19 e a guerra ucraniana são a demonstração disso mesmo. O risco global e o efeito sistémico são, pois, as duas propriedades emergentes mais virulentas da economia mundo em que vivemos. É aqui que nos encontramos, numa verdadeira encruzilhada e face a face com histórias, culturas, ideologias, economias e políticas domésticas muito variadas. O pós-pandemia, o pós-guerra, o pós-sanções, a nova política energética europeia, a nova política de segurança e defesa, o quadro de relações com a China e a nova estrutura de cooperação multilateral poderão radicalizar os assuntos europeus e aumentar o risco de balcanização da política europeia. Será absolutamente necessário fazer baixar a ansiedade, a falta de confiança e até o medo, para evitar o crescimento dos nacionalismos e populismos iliberais. A reeleição de Emmanuel Macron é um sinal de esperança política no sentido de um equilíbrio mais ambicioso entre soft power e hard power prosseguido pela via mais comunitária, uma mistura política delicada feita de acréscimos intergovernamentais e arranjos hors-traités.
* O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Artigo publicado no jornal Público.
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