“Algarve Mediterrânico, Tradição, Produtos e Cozinhas”, por Maria Manuela Valagão, Vasco Célio e Bertílio Gomes, Tinta-da-China, 2015, é não só a obra de consagração de uma porfiada investigadora de práticas e tradições alimentares, Maria Manuela Valagão, como passou a ser, doravante, o documento de referência da antropologia e sociologia da cozinha algarvia, no contexto de um património fabuloso de alimentação saudável no contexto da denominada dieta mediterrânica. Um documento com uma apresentação gráfica inexcedível, uma narrativa adubada no amor à terra, enquanto território condicionado pelo Mediterrâneo, paisagem alimentar entre a serra e o mar e o fervilhar urbano, onde se desvelam os primorosos produtos mediterrânicos algarvios, onde não falta o sal e a secagem, o pescado, os frutos secos, o vinho e o azeite.
A investigadora é tão exigente e delicada que nos recorda as preciosidades esquecidas, como os bicos de favas, as castanhas piladas, o medronho, a salicórnia. Postos os elementos da batalha patrimonial, conhecidas as culturas na singularidade do território, a narrativa vai entrar agora nos nossos sentidos: a multiplicidade dos temperos, o pão e as tibornas, a autora é pedagógica em todas as circunstâncias: “As tibornas têm como base pão embebido em azeite. A tiborna especial era a do dia da amassadura, feita com pão quente e fresco, acabado de sair do forno. Todavia, as tibornas comuns eram feitas com pão grelhado nas brasas. Se hoje em dia se fazem tibornas das mais diversas maneiras, tendo por base pão grelhado e azeite, até um passado recente esta era uma prática exclusiva do Outono. Provar o azeite novo ainda no lagar, fazendo tibornas ou tibórnias, era uma prática comum. Há muitos tipos de tibornas que, embora variando de uma localidade para outra no interior do Algarve, estavam sempre associadas a esta celebração do azeite novo”. Com tais temperos, abrem-se as hostilidades com sopas e açordas, a variedade de cozidos e acompanhamentos como as inconfundíveis papas ou xarém, as saladas (o ex-líbris algarvio é a salada de cenoura) e tomatadas, chegou o momento de referir o peixe e peixe no Algarve pode ser caldeirada, cataplana, arroz de lingueirão, choquinhos fritos e muito mais. A tradição algarvia, no tocante a carnes, guarda a ruralidade do dia da matança do porco e de que o meio envolvente oferece, caso da galinha e do borrego, sem esquecer a caça.
Falar de tradição, produtos e cozinhas é evocar os petiscos, uma convivialidade algarvia que igualmente aponta para as festividades, uma variegada confeitaria e doçara que a autora enumera com incontida paixão.
Se a obra conta com a investigadora certa e um fotógrafo exímio, quando se chega à inovação da prática culinária, o chefe que superintende esta prova de fogo de revelar o velho com olhos novos, temos uma consagração da cozinha algarvia sem mistificações ou receitas de importação dissimulada. Veja-se o tártaro de carapau com batata-doce de Aljezur, tudo é algarvio, e de igual modo a tiborna de polvo com laranja.
A organização da obra é tão abrangente que o glossário acolhe o que é necessário saber sobre a cozinha algarvia, a bibliografia deixa claramente exposto o trabalho aturado de investigação que precede tudo quanto se diz sobre história, paisagem e tradição algarvias, a identificação dos produtos mediterrânicos algarvios e o reportório de uma cozinha admirável que parece ter sido a última bênção que foi lançada sobre o extremo do extremo do Mediterrâneo Ocidental e que adiciona ao património alimentar português uma riqueza sem preço. Este livro é um tesouro, admiravelmente escrito por uma algarvia que se consagra definitivamente nos aspetos antropológicos e sociais dos produtos alimentares e das técnicas de preparação onde o Algarve é rei.
De leitura obrigatória, em qualquer ponto do país.
* Assessor do Instituto de Defesa do Consumidor e consultor do POSTAL