Sexta-feira à noite, Tavira celebra a Feira da Dieta Mediterrânica, as ruas estão cheias de gente, o ambiente é de festa. Também nós damos um passeio pela cidade. Na Rua 5 de Outubro, passa por nós, como tantas vezes, um pedinte e ladrão que em Tavira toda a gente conhece e do qual se diz que sofre de alguma perturbação mental. O homem, já frequentemente condenado por furto e outras tantas vezes libertado, segue, em agitação doentia como sempre, mas desta vez sem pedir esmola ou importunar ninguém. Já quase ao pé da ponte romana, de repente, dois indivíduos saem precipitadamente das suas lojas e um deles atira o mendigo ao chão e desfere-lhe um violentíssimo murro nas costas. Perante isto, nós e um outro passante intervimos, gritando e impedindo o agressor de continuar a pancadaria. Enquanto gritávamos para que parassem de bater ao homem, este escapuliu-se rua abaixo. Gerou-se então uma discussão em alta voz, na qual o agressor e o seu cúmplice justificavam a agressão com o facto de se tratar de um ladrão, pelo que tinha de ser castigado. Respondemos que o que havia a fazer era chamar a polícia, pois vivemos num estado de direito onde há leis claras e que ninguém tem o direito de fazer justiça pelas suas próprias mãos. Em inglês e com grande agressividade, um deles gritava: “a polícia não faz nada”, “vão-se embora que não têm nada a ver com isto”, “não se metam nisto, eu tenho aqui o meu negócio”!
As muitas pessoas que ali se encontravam assistiam ao “espectáculo” interessadas e curiosas, sem nada dizer ou fazer. Às tantas, uma senhora veio ter connosco explicando que o homem rouba e que essa seria a razão do castigo. Mais uma vez, dissemos que sabíamos disso, mas que num Estado de direito a justiça é feita pelo Estado.
Completamente chocados, avançámos pela ponte romana e deparamos com dois polícias, a quem ainda exaltados, contámos o incidente.
Enquanto um deles se afastou imediatamente, o outro ouviu-nos e explicou que não podia fazer nada e que se quiséssemos, podíamos ir à esquadra apresentar queixa. Acrescentou ainda que a polícia já actuou várias vezes, entregando o ladrão à justiça, mas que de cada vez ele volta a ser libertado, não sendo, por isso, de estranhar que, se nem os tribunais nem a autarquia intervêm, as pessoas se queiram proteger.
Sem palavras e já sem qualquer vontade de continuar o passeio, apenas argumentámos que se nada se pode fazer, estamos entregues a uma impunidade inaceitável num estado de direito e voltamos à barbárie.
Vejamos, o que nos diz este incidente?
Em Tavira, durante a feira da Dieta Mediterrânica, em plena rua e na presença de inúmeros espectadores, uma pessoa que (nessa altura) apenas caminhava na rua, é brutalmente atacada. Dois homens saem de duas lojas locais e sentem-se no direito de fazer justiça pelas suas próprias mãos em público, com o argumento de que o indivíduo precisa de uma lição e que a polícia nada faz ou é impotente.
Como cidadãos, perguntamo-nos: como é possível que este conhecido larápio, que foi filmado por câmaras de vigilância durante vários roubos a lojas e que, segundo a polícia, foi várias vezes condenado, continue em liberdade, entregue a si próprio e à situação em que rouba e assedia os transeuntes? Claro que a revolta dos habitantes e proprietários das lojas é muito compreensível.
Mas é igualmente verdade que, num estado de direito, a justiça é feita pelo Estado, ninguém tem o direito de fazer justiça pelas suas próprias mãos.
O que nos diz este incidente sobre a confiança das pessoas quanto à capacidade do Estado português de garantir o estado de direito, o que nos diz sobre a confiança nos seus órgãos, na polícia, no poder judicial e na autarquia? São todos impotentes para garantir a lei, a ordem social e a justiça?
É de todo incompreensível e perigoso que os decisores políticos continuem a ignorar esta realidade. Os graffitis de “erva power” e a venda de droga em vários locais da cidade são também indicadores de que, sob a fachada da “Tavira Linda” e dos constantes festivais e feiras, se escondem problemas brutais, que urge resolver.
É mais do que tempo de o governo local e nacional encararem este fracasso do Estado de direito e actuem com medidas urgentes. É a própria democracia que está em grande perigo.
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