Se a biografia de Agustina (aqui apresentada no ano passado com entrevista à autora) pode ser lida com o enlevo de um romance, e se no romance anterior (também aqui recenseado) se cruzava ficção e ensaio, Isabel Rio Novo dá agora um novo passo no seu percurso romanesco, confirmando-a uma vez mais como uma nova voz da literatura portuguesa contemporânea, e presenteia-nos com o que poderíamos tentar definir como um romance biográfico, mas que se esquiva, como os livros anteriores, a ser classificado numa só categoria.
Escrever um quadro
No início do romance deparamo-nos com uma mulher velha, de longos cabelos grisalhos, que, todas as tardes, pouco tempo antes de o Instituto de Arte de Chicago fechar, costuma entrar na ala impressionista e postar-se a olhar para os rostos num quadro. A explicação é prometida para quem chegar ao final do romance…
Imediatamente após esse breve preâmbulo, a narrativa começa num sábado de Inverno em 1877 com o jovem Gustave Caillebotte a instalar-se naquela que hoje é a praça de Dublin, numa confluência de ruas, onde intenta capturar uma cena da vida parisiense na sua tela. «Gustave é um homem de estatura mediana, magro, de cabelo castanho-claro. Os olhos são cinzentos ou esverdeados, as mãos, mais ásperas do que a suavidade das feições ou as roupas de boa qualidade deixariam supor.
A Autora recorda estas coisas assim, como se as visse, porque na realidade as viu, ou sente que as viu.» (p. 12)
A partir daqui está dado o mote do romance, que passa a alternar entre a narrativa da vida de um jovem aspirante a pintor e a Autora, que se assume claramente como a fonte criadora desta história, ainda que se refira a documentação e as exposições por parte de Helena, professora de história de arte, sobre a vida de Gustave.
«Poderíamos principiar antes, mas há sempre um tempo que definimos como o início. A Autora gosta de pensar que foi ela quem definiu o princípio desta história e que nem Helena, que lhe cedeu documentos, nem as circunstâncias da vida, que lhe permitiram escrever durante um ano inteiro, pesaram nessa decisão.» (p. 20)
E deste ponto em diante, inicia realmente a história de vida de Gustave, contada a partir das gerações que o antecederam, nomeadamente com o bisavô Pierre.
A Autora e a autora
A Autora pode ser considerada como a mesma Isabel Rio Novo que assina a autoria do livro, que ao longo da narrativa irá relacionando a história da vida de Gustave com a história da sua própria vida, não se esquivando a contar-nos episódios mais privados da sua vida. Essa alternância entre as memórias (re)criadas da personagem e as memórias (re)criadas da Autora permanece ao longo de todo o romance, mesmo quando a relação entre as duas situações parece apenas indirecta.
Um leitor atento que siga a autora nas redes sociais, designadamente no Facebook, incorrerá nessa tentação indiscreta de confundir esses episódios potencialmente autobiográficos com a realidade íntima de quem os viveu. Por exemplo, quando a 19 de Julho de 1870 a França declara guerra à Prússia e Gustave recebe a convocatória para ingressar na Guarda Nacional, sendo confrontado com a possibilidade de morrer, no parágrafo seguinte pode ler-se isto: «Cerca de um século e meio depois, também a Autora deste livro recebeu nas mãos o peso de um documento que convocava a sua mortalidade. Em rigor, não era um documento, mas um pequeno conjunto de películas e papéis. Falavam todos dela; não dela toda, de partes, e não dela apenas, de algo mais que se instalara no seu corpo.» (p. 64)
Como se pode ler noutra passagem: «Na verdade, não é de descartar que na história de Gustave Caillebotte a Autora deste livro procure a sua própria história» (p. 170)
Narrativa pós-moderna
De um jeito pós-moderno, o narrador (ou narradora), que curiosamente não adopta a primeira pessoa, assume claramente que pode desviar os acontecimentos como bem entende, impondo-se de forma omnipotente. A Autora ora lembra-se, ora imagina, ora rompe decididamente com os factos e deixa a sua criatividade seguir outro rumo. Mas nem sempre é omnisciente, como quando se interroga ao ver Gustave em jovem: «O rapaz leva no dorso o vigor, a flexibilidade, a frescura de pele, que o resguardam de todas as máculas. Tem nos olhos o brilho dos dias intermináveis. Pode todos os sonhos. Desconhece todas as dificuldades. Que quererá ele, interroga–se a Autora, vendo-o avançar descalço sobre a relva?» (p. 44)
Existem inclusive outras personagens que transitam por este romance que poderiam ser mais apelativas, mas é Gustave que fascina a Autora, a quem chama de «seu amigo», sendo que «a sua relação com Gustave Caillebotte excedia o interesse de uma romancista por uma personagem» (p. 49). Essa paixão, «maneira de dizer», é, como todas as paixões, um sentimento privado, mas nem por isso secreto: «a Autora surpreendeu-se com o modo como Helena parecia muito ao corrente do seu interesse por Gustave Caillebotte, embora, em seu redor, não fizesse segredo dos livros de arte que colecionava nem das viagens que empreendia para visitar museus. Talvez todos os que a cercavam soubessem. Talvez até os seus alunos percebessem a emoção que a percorria quando, nas aulas de literatura, a pretexto de um qualquer poema, projetava pinturas de Gustave Caillebotte, procurando ser sucinta e objetiva nas aproximações que entretecia, mas percebendo, pelos olhares de simpatia que recebia dos adolescentes, que se denunciava forçosamente» (p. 28).
Há inclusivamente passagens em que a Autora reconhece que pode estar a filtrar a realidade pelos olhos da personagem que incorpora e interioriza, como no seguinte exemplo: «Mas as florestas, as pradarias cobertas de trevos, as macieiras floridas, as veredas relvadas, as vilas pitorescas erguidas nos declives e quase inclinadas sobre o mar, eram tão parecidas com as que Gustave Caillebotte representara que a Autora chegou a perguntar-se se o que via não seria pintado pelo olhar do seu amigo.» (p. 20)
O foco sobre a realidade pode oscilar entre a câmara que regista como um filme ou a tela em que a descrição corresponde a pinceladas, temas e reflexos, como é próprio da pintura. Aliás, refere-se, a dada altura, que a Autora, por nunca ter pintado, procura escrever «como quem tentava desenhar, buscando beleza nas ideias, nas construções, na melodia das palavras» (p. 73).
Desdobrar-se em personagens
Para terminar, e voltando a Helena, há diversos momentos em que nos é dado a entender que, malgrado o desconforto da Autora em relação à professora de história de arte, a relação entre as duas é mais inequívoca do que a própria Autora gostaria de confessar, insinuando-se no leitor a possibilidade de Helena materializar um alter-ego, pois afinal é ela quem auxilia a Autora no seu processo de escrita, informando-a e documentando-a:«a Autora observava a mulher sentada à sua frente. De repente, Helena era tão parecida consigo que se diriam irmãs. Os mesmos cabelos castanhos e finos, caídos sobre os ombros, os mesmos lábios cheios, os mesmos olhos grandes. Só que os de Helena eram um castanho e o outro verde. Um como os seus, pensava a Autora, o outro como os de Caillebotte. Sim, eram parecidas.» (p. 49)
Isabel Rio Novo, doutorada em Literatura Comparada, nascida no Porto, lecciona Escrita Criativa e outras disciplinas, como História de Arte (à semelhança de Helena…), no âmbito da arte, da literatura, do cinema. Foi finalista do Prémio Leya por dois anos consecutivos, em 2016 com o Rio do Esquecimento, e em 2017.
Rua de Paris em Dia de Chuva pode definir-se como uma biografia romanceada de um milionário excêntrico, mecenas dos impressionistas, coleccionador de arte, indivíduo multifacetado, pintor vanguardista; mas é também uma elegia a uma época e à cidade de Paris, conforme a cidade da luz passa por sucessivas revoluções, pela industrialização e pela modernização; é um romance magnífico de pujança narrativa, que dialoga com a arte e a vida, onde confluem diversos aspectos – tal como, no quadro que dá nome ao livro, as várias ruas que convergem –, alguns bastante caros ao pós-modernismo – há inclusivamente um piscar de olho ao leitor, quando na biblioteca de René se encontram livros europeus com títulos extravagantes como «La fièvre des âmes sensibles ou Rivière de l’oubli» (p. 128). E tal como o quadro depende de um observador, este livro depende da perspectiva de quem lhe é exterior, como no pormenor da capa, alguém que está deste lado, «à esquerda das personagens, na porção do quadro que não se vê» (p. 224).
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de junho)