Cláudia Andrade, autora publicada pela Elsinore – editora que discretamente tem vindo a apostar em autores inéditos, novas vozes literárias no panorama literário português numa prosa singular com assinatura de estilo –, venceu recentemente o Prémio Autores 2020 da Sociedade Portuguesa de Autoresna categoria de Melhor Livro de Ficção Narrativa, com o seu Quartos de Final e Outras Histórias. Já aqui se escreveu a propósito do seu primeiro romance, Caronte à Espera, recenseado no Cultura.Sul de Julho deste ano. Mas compete-nos agora traçar o furor causado pelo seu livro de contos, publicado em Setembro de 2019, considerado um dos melhores livros do ano pela crítica.
O romance Caronte à Espera é capaz de deixar o leitor tão agarrado quanto desconcertado, mas convém esclarecer que o livro de contos Quartos de Final e Outras Histórias é-lhe superior, ainda que os una essa mesma prosa burilada cujas frases se distendem e emaranham, ao jeito das acções das próprias personagens, tão complexas e enigmáticas quanto marginalmente desamparadas. Estas 18 histórias distendem-se ora num sopro de 3 páginas, ora em 20 páginas, como é o caso de «O Exilado», o conto mais extenso desta colectânea.
O primeiro conto, que dá nome ao livro, conta-nos a história de uma noiva desesperada, no dia do casamento, por chamar a atenção do seu noivo, mais preocupado com ver os quartos de final do campeonato de futebol, até que decide entrar numa das casas-de-banho com um dos empregados. Sabemos que a noiva traz consigo uma lâmina com a qual se corta, mas não nos é inteiramente revelado como no desfecho dessa história o casamento acaba em sangue. E assim, logo na primeira história deste livro, o leitor é deixado no fio da navalha, enquanto nele se sucedem momentos de vida de protagonistas tão díspares quanto excluídos. A existência murcha destas personagens apenas parece palpitar fugazmente com vida quando dilaceradas por certas pulsões, viscerais como o sexo, intensas como a paixão, capazes de toldar de vermelho «o seu interior» (p. 119), num mosaico de histórias quase sempre desconcertantes: uma prostituta que recebe num sofá na berma de uma estrada e se liberta ao salvar uma cadela abandonada; uma moribunda que da cama, no prenúncio do seu estertor final, lança diatribes reveladoras dos mais infames segredos das mulheres que em seu redor oram por ela; um violador de viúvas e que depois de ter provado um menino por acidente, decide agarrar um anjo; um poeta que leva uma vida sem máculas nem pecados e por isso decide reescrever com algum acto incauto a sua futura biografia, para que não seja demasiado sensaborona. Estas personagens e situações têm, entre si, muito pouco em comum, mas compõem indubitavelmente um universo tão insólito quanto fracturante numa ficção que rasga o véu da vida, essa «marcha ridiculamente longa» (p. 108), e abala qualquer desejo de conforto num leitor que procure nestes contos uma prosa fácil, delico-doce, que embeleze a vida, nalgum compasso de espero de fuga ao mundo. A escrita desta autora coloca o dedo na ferida, num mundo muito pouco tranquilizador, descrito, a dada altura, como um «grotesco circo» (p. 61), capaz de suscitar revolta «contra a natureza das coisas. Não há nada de claro ou justificado nesta trapalhice universal, nenhuma coordenada» (p. 62), sendo «aquele outro inferno, tão redundante em relação a este» (p. 64). E nesse inferno que é o quotidiano, o insólito anda a par e passo do absurdo da existência humana, entre homens que esfacelam anjos e viúvas que ocupam as mãos para evitar serem visitadas pelo fantasma do marido.
A prosa de Cláudia Andrade entra no panteão dos «escritores merecedores desse epíteto»
A existência, para a qual somos catapultados, arrancados «a um muito confortável nada», é, afinal, uma «camarazinha de horrores» (p. 129), onde a vida tem, ainda assim, o frémito indomável de se replicar, sempre pronta a «fazer um outro morto para nascer dali a nove meses, com um crédito de mil anos para se desiludir com a existência» (p. 50). Mas, um pouco ao jeito do realismo mágico e de um certo pós-expressionismo pictórico, o mundo, como a vida que nele pulula, pode também revelar-se um prodígio, onde até os objectos quotidianos podem perder a sua domesticidade, «removida a patina de quotidianidade», ganhando vida própria e «interesse novo ao olhar» (p. 117). Até a vida pode ganhar ambiência fantasmática, como acontece no funeral de «As Mãos»: «A natureza esmerava-se em participar no espírito da coisa: o dia estava frio, pálido e pétreo. Assim que o cortejo começou, uma névoa leitosa começou por mover-se rente ao chão, apagando as pernas e dando a todos a impressão de que flutuavam. A certa altura, a névoa subiu, esfumando as arestas das coisas, depois adensou-se e submergiu tudo.» (p. 94)
Pode ler-se em «O Exilado» como «o escritor» «pegava nessa coisa insossa e informe que era a vida e a decantava no laboratório da memória, do raciocínio e da boa vontade poética, para conseguir sentir um amor às coisas que seria impossível enquanto confrontado com elas, para delas conseguir espremer então qualquer coisa sobre a qual valesse a pena escrever» (p. 113). São particularmente curiosos os contos desta compilação que mais se debruçam sobre a arte da escrita, em que pode o leitor querer deslindar uma explicação possível para o espírito que anima estas páginas, como em «Requerimento» onde se pode ler como o autor dessa carta «inadvertida e compulsivamente» levou a tarefa de pensar «demasiado a sério e, à custa de observar, ponderar e coleccionar tanto e tão circunstanciado absurdo, matéria-prima do mundo, tomei amor ao desalento e arruinei a minha alegria para sempre» (p. 60). Podíamos até rematar que a prosa de Cláudia Andrade entra no panteão dos «escritores merecedores desse epíteto» que «deambularam por ruelas escuras em sofrimento pelas suas obras, esfolaram os narizes contra as paredes da labiríntica e incerta intuição literária. Era uma obra sólida, a sua, densa e trapalhona como a vida» (p. 117).
Cláudia Andrade nasceu em Lisboa. Autora ainda do livro de contos Elogio da Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira de Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe era habitual de Vitória F., entretanto abandonado), considera-se sobretudo contista, embora esteja a trabalhar num segundo romance.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de novembro)