Desconfinámos, já se registam temperaturas de verão e a época balnear está oficialmente aberta. Pouco a pouco vamos regressando à normalidade. Porém, esta normalidade será algo assim tão bom? Que aprendemos com a experiência de pandemia? Que melhorias podemos implementar no nosso modo de vida?
Por entre o bombardeio de notícias trágicas referentes à pandemia recordo aquelas, de um outro teor, que me deixaram um sorriso nos lábios: enquanto a humanidade se retraía em quarentena, animais selvagens foram vistos vagando por cidades ao redor do mundo. A cidade de Lopburi, na Tailândia, foi tomada por ganguesde macacos de cerca de 500 animais cada. Alguns dos mais de 1000 cervos que habitam o parque Nara, no Japão, também resolveram passear-se pela cidade, em grupos de 10 a 15. Em Itália pessoas depararam-se com ovelhas, cavalos e até mesmo javalis. Estes últimos também se passearam pelas avenidas espanholas e pelas praças portuguesas. Em Bombaim, na Índia, os pavões exibiram o seu esplendor. No País de Gales, as estrelas foram um grupo de cabras-de-Caxemira que desceram do promontório de Great Orme e tomaram de assalto o centro da cidade de Llandudno: correram em rebanho, comeram sebes, jardins e flores às janelas. Veados e corças tomaram Londres. Pelo nosso país também as raposas, bem como belos pássaros fizeram as suas incursões em cidades — toutinegras, felosas, pegas, gaios, e aves de rapina — finalmente deixaram-se ver e ouvir à vontade.
À medida que o homem e a sua “civilização” avançaram, os animais recuaram. Quando o homem se confinou, os animais vieram até aos centros urbanos. Afinal, de quem são estes espaços?
Talvez valha a pena recordar a Carta do Chefe índio Seattle ao Grande Chefe de Washington, Franklin Pierce, em 1854. Esta carta foi escrita em resposta à proposta do Governo norte-americano de comprar grande parte das terras da sua tribo Duwamish, oferecendo em contrapartida a concessão de uma reserva:
“Como podereis comprar ou vender o céu? Como podereis comprar ou vender o calor da terra? A ideia parece-nos estranha. Se a frescura do ar e o murmúrio da água não nos pertencem, como poderemos vendê-los? Para o meu povo, não há um pedaço desta terra que não seja sagrado. (…) Sabemos que o homem branco não percebe a nossa maneira de ser. Para ele um pedaço de terra é igual a um outro pedaço de terra, pois não a vê como irmã mas como inimiga. Depois de ela ser sua, despreza-a e segue o seu caminho. (…) Trata a sua Mãe Terra e o seu Irmão Firmamento como objectos que se compram, se exploram e se vendem tal como ovelhas ou contas coloridas. O seu apetite devora a terra, deixando atrás de si um completo deserto. (…) Não consigo entender. As vossas cidades ferem os olhos do homem pele-vermelha. Talvez seja porque somos selvagens e não podemos compreender. Não há um único lugar tranquilo nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desenrolar das folhas ou o rumor das asas de um insecto na Primavera. O barulho da cidade é um insulto para o ouvido. E eu pergunto-me: que tipo de vida tem o homem que não é capaz de escutar o grito solitário de uma garça ou o diálogo nocturno das rãs em redor de uma lagoa? (…) Se o homem cuspir na terra, cospe em si mesmo. Sabemos que a terra não pertence ao homem, mas que é o homem que pertence à terra”.
De uma forma poética, o sábio Grande Chefe índio Seattle evidenciou a relação de poder que o homem branco estabeleceu com a natureza. Em vez de um usufruto de forma integrada, o que se verificou foi uma conquista quase sempre acompanhada de destruição. Filosoficamente existe aqui um problema de base que envolve o conceito de pertença. O chefe índio entendia que o homem pertence à terra. Evidentemente, não se pode de modo nenhum possuir aquilo a que se pertence. Pertencer e possuir entranham concepções de vida muito distintas, são maneiras antagónicas de estar no mundo.
Sabemos que o modo de vida altamente industrializado não é sustentável. É um estilo de vida que gasta recursos naturais em troca de luxo e lucro rápido, enquanto milhões de pessoas, tanto nos países industrializados como nos países subdesenvolvidos, carecem do mínimo necessário e de emprego digno. O uso desregrado de combustíveis fósseis contribui para o aquecimento global cujas consequências poderão ser catastróficas. A agricultura industrializada, com monoculturas e dependência de fertilizantes artificiais e maquinaria pesada acelera a erosão da terra. Agrotóxicos envenenam os agricultores, a vida selvagem, o solo e os alimentos. Os resíduos prejudicam a saúde de todos que comem esses alimentos. Continuamos a utilizar combustíveis poluidores em máquinas e meios de transporte. Os animais criados em confinamento são tratados de maneira humilhante e sofrem até à morte. As 17 maiores áreas de pesca do mundo alcançaram e ultrapassaram seus limites naturais no começo da década de 90 do século passado. No mundo inteiro, um terço dos peixes é triturado como ração para outros animais. A cada ano, nas Américas do Sul e Central, 20.000 km² de florestas tropicais são derrubados para criação de pasto.
Nada disto é novo, já em seu tempo o famoso cineasta oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau nos alertava: “Hoje em dia, o ser humano apenas tem perante si três grandes problemas que foram ironicamente provocados por ele próprio: o aumento da população, o desaparecimento dos recursos naturais e a destruição do meio ambiente. Triunfar sobre esses problemas, visto sermos nós a sua causa, deveria ser a nossa mais profunda motivação”.
Também o conceito de Ética ambiental não é novo, surgiu na década de 60 do século passado, ampliando o conceito de ética para a interacção com a natureza, considerando que a conservação da vida humana está intrinsecamente ligada à conservação da vida de todos os seres. Tomam-se todos os seres como iguais, por conseguinte, o homem não pode continuar a agir de forma predatória em relação aos outros animais e meio-ambiente. Procura-se um desenvolvimento sustentável, isto é, um desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender às suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave:
– o conceito de necessidades, em particular as necessidades essenciais dos pobres do mundo, às quais deve ser dada prioridade absoluta;
– e a ideia das limitaçõesa serem impostas à nossa organização social tendo em conta a capacidade do meio ambiente de atender às necessidades presentes e futuras;
Dito de uma forma simples, o homem deixa de ser donoda natureza para voltar a ser parteda Natureza. Pertencer em vez de possuir, tal como defendia o Grande Chefe índio Seattle. Com 16 meses de vivência em pandemia ainda não teremos aprendido que um modo é sustentável e o outro não?!
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico