Creio que nunca se escreveu tanto como hoje em dia. Escrevem-se mensagens nos telemóveis mais do que se telefona, escreve-se no Facebook, no Twitter, no blog, no correio eletrónico. Nunca a escrita foi tão acessível! E talvez nunca se tenha escrito tanto e lido tão pouco…
Hoje proponho que pensemos sobre a escrita. Porém, numa época em que tanto se escreve, importa salvaguardar que proponho que reflictamos sobre a escrita literária e filosófica. Deixemos de fora esse amontoado de palavras dos sms, das redes sociais, dos jornais e das revistas.
Nestes mais de quatro anos de cafés filosóficos mensais realizados nas cidades de Tavira e Faro, surpreendi-me ao constatar que nenhum dos até hoje participantes leu na íntegra Em busca do tempo perdido, de Proust ou Ulisses de James Joyce. E poucos foram aqueles que tomaram sequer contacto com algum texto de um destes gigantes da literatura do sec. XX. Talvez os sete volumes ao longo dos quais se espraia a obra do primeiro, ou as 752 páginas do volume único do segundo intimidem mesmo os mais ousados. São obras magistrais que requerem tempo, não se compadecem com rapidinhas, nem leituras na diagonal. Existem nelas frases que demoram vários dias a saborear.
Já imaginou como seria uma conversa entre estes dois génios da literatura? De facto, não precisamos de imaginar porque tal encontro aconteceu. A 18 de Maio de 1922, o escritor e mecenas britânico Sydney Schiff (pseudónimo Stephen Hudson) e a sua esposa Violet foram os anfitriões de um jantar de gala no Ritz, por ocasião da estreia de Le Renard de Stravinsky em Paris. Entre os convidados encontravam-se Sergei Diaghilev ― o famoso director da companhia Ballet Russes ― o compositor Igor Stravinsky, o pintor Pablo Picasso, e os escritores James Joyce e Marcel Proust.
Em Como Proust pode mudar a sua vida, Alain de Botton descreve este singular encontro que ocorreu nessa noite sob um lustre do Ritz: Joyce chegou atrasado e sem smoking, Proust manteve o seu casaco de peles vestido a noite toda. Proust perguntou a Joyce se conhecia o duque de tal e tal. Joyce respondeu “Non”. Os anfitriões perguntaram a Proust se lera determinado excerto de Ulisses. Proust respondeu “Non”, e assim por diante. Depois do jantar a situação não melhorou: “Proust entrou no taxi com os seus anfitriões, Violet e Sydney Schiff, e, sem pedir, Joyce entrou também. O seu primeiro gesto foi abrir a janela e o segundo acender um cigarro, duas coisas que, na opinião de Proust, constituíam um atentado à vida. Durante a viagem Joyce observou Proust sem dizer uma palavra, enquanto Proust não parou de falar sem se dirigir a Joyce. Quando chegaram ao apartamento de Proust na Rue Hamelin, Proust chamou Sydney Schiff à parte e disse: ‘Peça, por favor, a Monsieur Joyce que deixe o meu taxi levá-lo a casa’. O taxista assim fez. Os dois homens nunca mais voltaram a ver-se.”
Parece não ter existido entre os dois escritores um mínimo de empatia; não foram capazes de estabelecer uma plataforma de comunicação. Aquela que poderia ter sido uma conversa memorável entre dois génios da literatura resumiu-se à palavra “Non”. Contudo, diz-nos Alain de Botton, mesmo que este histórico encontro tivesse corrido maravilhosamente, ainda assim teria existido uma discrepância incontornável entre a conversa e a escrita destes dois homens. De acordo com Botton, o diálogo exibe aqui os seus limites: seria impossível falar ao nível no qual se escreve em Em busca do tempo perdido ou em Ulisses.
Na verdade, enquanto que numa conversa somos naturalmente mais expontâneos, e, por conseguinte, menos reflectidos, na escrita, pelo contrário, tendemos a reler e re-escrever várias vezes a mesma frase. Assim, como nos diz Botton, “as ideias originais ― fiapos nus e desarticulados ― são enriquecidas e aperfeiçoadas com o tempo.” Não se pode, portanto, esperar da oralidade a mesma agudeza de raciocínio, precisão, ou finura expressiva alcançável na escrita.
A filósofa María Zambrano, num magnífico texto intitulado precisamente “Por que se escreve?” incluído no livro A Metáfora do Coração, afirma: “o imediato, o que brota da nossa espontaneidade, é algo pelo que inteiramente não nos fazemos responsáveis, porque não brota da totalidade íntegra da nossa pessoa; é uma reacção sempre urgente, premente.” A urgência da oralidade não se compadece do tempo necessário para aprofundar o pensamento ou alargar o escopo da análise. “Há no escrever um reter as palavras, como no falar há um soltá-las”, prossegue María Zambrano, por isso mesmo “escrever vem a ser o contrário de falar”. A partir daqui a filósofa entrará numa linha de raciocínio que surpreende, considerando que ao falar nos tornamos prisioneiros do que dissemos enquanto que ao escrever nos libertamos.
Suponho que tendamos a pensar o contrário. Não será a palavra falada, que se desvanece após ser pronunciada, a mais livre? Precisamente porque permanece, não nos tornará a palavra escrita seus prisioneiros? Porém, para María Zambrano, se pela palavra dita nos tornamos livres do momento ou da circunstância “assediante e instantânea” essa mesma palavra não nos recolhe. Por este motivo, a oralidade acabará sempre por produzir desagregação. Ao escrever, pelo contrario, as palavras já não se encontram ao serviço do “momento opressor”, muito pelo contrário, “partindo do nosso ser em recolhimento, irão defender-nos perante a totalidade dos momentos, perante a totalidade das circunstâncias, perante a vida na sua integridade”. Segundo María Zambrano a libertação somente acontece na perdurabilidade, por conseguinte: “salvar as palavras da sua momentaneidade, de seu ser transitório, e conduzi-las em nossa reconciliação rumo ao perdurável, é o ofício de quem escreve”.
E que dizer sobre o acto de escrever e o acto de ler? Miguel Esteves Cardoso num texto intitulado “Escrever e Ler” incluído no livro No passado e no futuro estamos todos mortos afirma: “Por cada hora que passo a escrever, recebo três horas de leitura. Nada mau este retorno: 300 por cento.” Este cálculo não se percebe de imediato, mas o escritor adiante clarifica: “escrevo devagar e leio depressa. Esta crónica pode levar três horas a escrever mas não consigo levar mais de três minutos a lê-la. Por outras palavras, para eu escrever o número de palavras que leio em três horas precisaria de 600 horas.”
Fica assim matematicamente explicito aquilo que todos nós, certamente experimentamos: existe uma significativa diferença das tessituras do tempo, da oralidade, da escrita e da leitura. O modo de vivência do tempo é, em si mesmo, uma forma de acesso particular à realidade a que estamos idos. Quem não apenas lê muito, mas lê, sobretudo, bons livros, sabe que há reinos de realidade que apenas se alcançam nesse tempo da leitura, e que há estados de consciência que não surgem de outro modo.
Talvez por esse motivo James Joyce tivesse ousado dizer: “A única exigência que faço aos meus leitores é a de dedicarem as suas vidas à leitura das minhas obras”.
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de dezembro)