Filosofia Dia-a-Dia
Quando pratico, sou um filósofo,
quando ensino, sou um cientista,
quando demonstro, sou um artista.
(B.K.S. Iyengar)
Certo dia, B.K.S. Iyengar (1918-2014) colocou esta exacta pergunta aos seus discípulos. Algum dos mais incautos talvez tenha respondido “Puna”, a cidade indiana onde Iyengar criou a sua escola de Yoga, uma referência incontornável para qualquer praticante desta arte. E se eu vos disser que, segundo Iyengar, se qualquer um formulasse a si próprio esta pergunta, a resposta seria sempre a mesma? Perguntará o leitor como será isto possível, e passar-lhe-ão pela cabeça um sem número de respostas divergentes, de Tavira aos seus antípodas e arredores! Pense um pouco, caro leitor, não se distraia… Qual seria a resposta que todos, sem excepção, daríamos em uníssono? “Onde é que eu vivo? No meu corpo!”
Em que é que a nossa percepção habitual do corpo se altera com esta resposta? O corpo passa a ser tomado como uma casa da qual somos hóspedes. Ocupamo-lo durante algum tempo mas não nos pertence. O corpo é algo provisório que algum dia perecerá, mas, o hóspede que o habita e que com ele não é coincidente poderá ter outro destino.
Idiosincrasias do corpo
No Ocidente o corpo é frequentemente vivido como um obstáculo. Platão (428/348 a.C.) no Fédon afirma que os sentidos são como pregos que cravam a alma no corpo. A morte surge como uma libertação pois a mente poderá então dedicar-se, sem distracções, à busca de conhecimento.
Pelo contrário, no Oriente, possuir o precioso corpo humano é o maior privilégio que se pode obter. Apreciemo-lo na Parábola da Tartaruga: “Imagine que todo o universo se transformou num infinitamente vasto mar azul. Flutuando na superfície desse mar há uma canga de madeira (objecto que serve para atrelar os animais à carroça). Descansando no fundo do mar há uma tartaruga cega que nada até à superfície apenas uma vez cada cem anos. Esta tartaruga cega desconhece a existência da canga que sobe e desce sendo atirada para cá e para lá pelas ondas. Uma vez que a tartaruga só vem à superfície uma vez em cada século, qual é a probabilidade dela vir a colocar a canga de madeira? Ínfima, certo? Porém, Buda diz-nos que é muito mais fácil a tartaruga conseguir colocar a canga do que um ser consciente conseguir adquirir um corpo humano repleto de liberdades e vantagens.” Os Budistas vêem o precioso corpo humano como uma condição sine qua non de acesso à iluminação. Claro que temos de nos libertar do desejo, da aversão e da indiferença, mas corpo e mente têm de trabalhar em conjunto. Na tradição tibetana, para receber ensinamentos, não somente sentar-se correctamente é um requisito prévio como também desintoxicar expirando o ar residual dos pulmões (que intoxica o corpo e a mente); e gerar a motivação apropriada (que consiste em receber os ensinamentos com sentido em transformar-se num Bodhisattva e comprometer-se a salvar todos os seres sencientes do Samsara). Considera-se que se o discípulo não estiver “limpo” os ensinamentos vão cair num recipiente sujo e ficar contaminados.
Yoga
Quando o corpo está doente ou o sistema nervoso afectado, a mente fica inquieta, embotada, inerte, e a concentração ou meditação tornam-se quase impossíveis. O problema do controle da mente requer um grande esforço, como se depreende do diálogo entre Arjuna, o grande guerreiro, e Krishna, avatar do Hinduísmo, no Bhagavad-Gita:
“Krishna, falaste-me do yoga como de uma comunhão com Brahman (o Espírito Universal), que é sempre uno. Mas como pode ela permanecer se a mente é tão inquieta e contraditória? A mente é impetuosa e obstinada, forte e voluntariosa, tão difícil de dominar quanto o vento.”
“Sem dúvida, [Arjuna], a mente é incansável e difícil de controlar. Mas pode ser treinada pela prática constante. Um homem incapaz de controlar a sua mente achará difícil atingir essa comunhão com o divino; mas o homem que se controla pode atingi-la se se esforçar e dirigir a sua energia pelos meios adequados”.
Nos seus Yoga Sutras Patanjali identifica nove distracções e obstáculos que atrapalham a prática. A primeira delas é a doença que perturba o equilíbrio físico. A saúde é o alicerce a partir do qual se edifica tudo o resto.
* As reflexões sobre os textos da rubrica Filosofia Dia-a-Dia continuam nos Cafés Filosóficos que se realizam em Tavira e Faro em Português e Inglês. Para mais informações contacte [email protected]