O Plantador de Abóboras, com o subtítulo Sonata para uma neblina, é o sétimo e mais recente romance do autor timorense Luís Cardoso, publicado pela abysmo, em que o autor continua a brincar com as palavras e a pintar cenários míticos ao rememorar a sua terra da infância.
Luís Cardoso nasceu em Kailako, uma vila no interior de Timor. Nasceu pela segunda vez, para a escrita, na ilha de Ataúro quando aprendeu a ler e a escrever com as redacções da escola primária, e fazia o trabalho do colega Vasco que lhe pagava em pão com manteiga. É filho de um enfermeiro que prestou serviço em várias localidades de Timor, pelo que ficou a saber diversos idiomas timorenses. Estudou nos colégios missionários de Soibada e de Fuiloro, no seminário dos jesuítas em Dare e no Liceu Dr. Francisco Machado em Díli. Licenciou-se em Silvicultura no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa. Foi militante, desempenhando as funções de Representante do Conselho Nacional da Resistência Maubere em Portugal.
O autor estreou-se com Crónica de uma Travessi – A Época do Ai-Dik-Funam, em 1997, em que a escrita memorialista realizava diversas travessias. Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo, o segundo romance, publicado em 2002, é bastante singular, abordando elementos culturais que configuram a temática da independência de Timor. Em A Última Morte do Coronel Santiago, publicado em 2003, a intriga repartida em 12 capítulos centra-se na possibilidade do regresso do protagonista a Timor. A Dom Quixote publicou ainda Requiem para o Navegador Solitário, em 2007. Os seus romances seguintes, O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação, em 2013, e Para onde vão os gatos quando morrem?, em 2017, foram publicados pela Sextante.
Luís Cardoso é um dos raros autores que tem Timor como berço e a sua profícua obra centra-se em temas como a memória, a identidade, a História. Todos os seus livros se interligam, inclusivamente, ora com referências explícitas ao autor e aos outros títulos, ora por episódios ou motivos que vão ressurgindo. Esta intertextualidade homoautoral, onde confluem ainda diversas outras referências exteriores à sua obra, serve como comprovação da existência de um mundo ficcional muito próprio, atestando a criação de um imaginário que efabula e recria toda uma geografia da alma. Quando lemos a sua obra e sobre a sua obra, fica aliás a sensação que partiu de Timor para começar a escrever sobre Timor. Nalgumas das suas obras, não se refere contudo ao cenário como sendo Timor. Em O Plantador de Abóboras, designa-se o reino de Manu-mutin (que podemos tomar como um local imaginário ou como sendo Manatuto) escondido algures no interior do país: «Uma terra oculta como tantas outras que foram descobertas.» (p. 95)
O autor recorre constantemente a expressões e palavras do tétum, língua oficial timorense a par do português. Por exemplo, quando se refere malae-mutinpara designar o europeu, e malae-metanque significa africano. A polifonia linguística está aliás presente noutros escritos do autor, como o seu conto Cáspita, onde se explica como o narrador cresce rodeado de várias línguas: o laclei, o mambae, o tétum, e por fim o latim… Em O Plantador de Abóboras, a narradora fala-nos da sua pronúncia que descreve como uma «estranha mistura» entre «mambae, tétum, português e o grasnar de um ganso» (p. 150). Na sua prosa, Luís Cardoso brinca constantemente com as palavras, reflectindo sobre elas, como acontece quando a narradora brinca com o uso do verbo escrutinar. Usa ainda refrões que marcam uma cadência muito própria no romance (e que recordam a escrita de António Lobo Antunes). A própria estrutura do romance é circular, feita de recorrências, repetições, avanços e recuos.
Duplos e intertexto
É muito curiosa, e um dos aspectos mais fortes da sua obra, a forma como o autor se desdobra nos seus escritos em narrador ou em personagem. Nesta obra, especificamente, a narradora é uma mulher (como já acontecia em Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo). E mais perto do final percebemos que o narratário é um jovem seminarista que tencionava estudar Agronomia em Portugal, sonho esse interrompido pela guerra.
A intertextualidade está presente ao longo do livro, como aliás acontece frequentemente na sua obra. Se, por um lado, o próprio subtítulo do livro é Sonata para uma neblina, por outro lado, a sua estrutura tripartida (do Primeiro ao Terceiro Andamento) apontam para uma sinfonia. Da literatura à música (por exemplo, com a música Que sera, serana voz de Doris Day), encontramos diversos ecos da comprovação da existência de todo um mundo alternativo e paralelo ao mundo empírico, o da arte. Mas é a primeira vez que num livro do autor se incorre na pintura, pois a nossa protagonista e narradora pinta. Ainda mais num diálogo surpreendente com a belíssima capa e as ilustrações a cores de Ana Jacinto Nunes, que tanto enriquecem este livro.
Ainda a propósito da intertextualidade temos a forte presença do Dom Quixote, citado em várias passagens no original castelhano. O narratário, que se faz acompanhar permanentemente desse livro, é aliás apelidado de Sancho Pança pela narradora: «Faltava-lhe o arrojo e a loucura de Don Quijote» (p. 153).
A narradora
É possível detectar semelhanças entre esta narradora e a Beatriz de Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo. Ambas podem ser entendidas como alegoria de Timor, pois a vida da noiva atravessa as várias fases da história do país, da colonização à ocupação indonésia. Tal como a Beatriz, também esta donzela tem de ser levada «para bem longe da fronteira por causa de desacatos que tiveram lugar entre ambos os lados pela minha disputa» (p. 131). Mas esta mulher, de nome desconhecido (Insulíndia? Bellis Sylvestris?) é ainda mais feérica do que Beatriz: conhecida como «a neblina ou a noiva de Manu-mutin» (p. 122); como a fantasma, na forma como enfrentou todos no seu vestido de noiva manchado de sangue; ou mais exactamente como uma bruxa, uma mulher que vive na loucura… E talvez por ser considerada a louca daquele local a sua voz ganha liberdade para denunciar, interpelar, acusar. O próprio nome com que o noivo a apelida, Bellis Sylvestris, é nada mais do que o nome científico da Margarida, um nome próprio que já surgiu antes em A Última Morte do Coronel Santiago.
A narradora, apesar de ter ascendência africana, é branca como a neve, branca como uma margarida. Esta noiva foi criada por um ganso branco, o que representa uma alegoria do colonialismo (aliás explícita na obra na pág. 160). Com este ganso (além das muitas outras aves que por aqui passam) parecemos entrar no domínio do mito. Mito esse que surge na narrativa de forma muito especial, quando o antepassado dos timorenses, o avô-crocodilo, tenta impedir a sua fuga (pp. 60-61).
O Plantador de Abóboras – Sonata para uma neblinaconstitui um fantástico retrato, entre o mito e a crítica, à história de Timor desde os tempos da ocupação colonial portuguesa ao mesmo tempo que interpela constantemente alguém a quem é dirigido todo o livro, da primeira à última frase, um narratário que se desdobra entre o seu noivo Sancho Pança e um misterioso visitante:
«Extraordinário, Sancho Pança, é este povo que (…) aguenta tudo e todos com extraordinária paciência. Primeiro foram os malaecolonialistas, depois os kamikazesdo Japão, mais tarde os komodoou lagartos da Indonésia e, por fim, os seus libertadores.» (p. 180)