Bem sei que o caro leitor já estava à espera de mais um artigo como quem aguarda, ansioso, os benefícios da bazuca. Juro, a pés juntos, que não me esqueci de si, porque a minha memória não é tão frouxa quanto a da Marta e a do Lacerda Sales.
Mas, vamos ao que interessa, para não consumir o seu tempo e paciência com a gabarolice própria de que não há português saído do sarcófago que se me equipare.
“Sim, caro leitor, porque, ao que se sabe, o José Milhazes é o único velhinho de nevadas barbas a interessar-se por política”.
Sim, porque desta vez é que vai ser! Idealistas congénitos, temos o dever de aplaudir a súbita erupção deste património genético da política, que é a caça ao voto.
Saudemos a naturalização regionalista dos candidatos, a desenvoltura do seu fraseado escorado no admirável mundo do faz de conta que, pedindo muito pouco à nossa imaginação, tem o mérito de colocar-nos uma desmedida ironia no acelerador do hipotálamo.
Estes períodos são abençoados por galvanizarem o manipulado entusiasmo de pedintes, músicos e profetas na descoberta de metafísicos programas eleitorais, razão de ser do nosso conformado viver. Sim, porque desta vez é que vai ser!
Veja só como é gracioso observar os candidatos “bem resolvidos”, confundindo a vida com uma banda desenhada, “soltando a franga” com aqueles belíssimos números de circo, vindo em nosso socorro como quem finge perceber porque rimos, choramos ou gritamos.
Sim, porque desta vez é que vai ser! E, se não for, não deixa de ser um bálsamo podermos ver o mundo prometido ao contrário. Por isso, importa que valorizemos o imenso mérito que há nesse apaziguar de consciências, perante a passageira amargura de um tempo efémero que, por artes mágicas, converte o nosso quotidiano crepuscular num mundo tão resplandecente que quase nos dispensa de termos os pés assentes na Terra.
Cá por mim, é nesta toada celestial que melhor podemos apreciar os dínamos impulsionadores daquelas estratégicas palavras-chave que vão por onde os verbos as mandam.
Caro leitor, aproveite bem estes períodos estratosféricos da nossa História, como se estivesse numa escola a eleger um delegado de turma. Só eles têm o condão de transformar num vê se te avias os problemas da descarbonização da economia, da sustentabilidade, do ambiente, do crescimento e do desenvolvimento, requisitos ímpares para poder apreciar a silhueta da recorrente montanha-russa, calcorreada por viçosas promessas incumpridas que aí vão resvalar.
Vamos sentir-nos tão absurdamente embevecidos com a escassez de conteúdos da sua prosa, que não hesitaremos em sorver uma qualquer sopa de letras, mesmo que temperada com um desusado acordo ortográfico.
Da espessa verborreia eleitoralista, excetuar-se-á a caça à rola-comum, até que essa espécie pipi se regenere. Uma injustiça relativa a certos animais, já que as felizes vacas açorianas continuarão, ostensivamente, a passear-se o tempo todo, em verdejantes pastos, com vista pró mar.
Já a gestão dos palmípedes, elevados à condição de simpáticos patos bravos, terá um tratamento especial que lhes permita fáceis aprovações de licenças para a venda de formigueiros apinhados de andares e piscinas.
A esse propósito, ufanemo-nos porque, finalmente, vamo-nos sentir uns sortudos por não termos que esbanjar mais os nossos impostos na construção de barragens, onde não chove. Só assim, essas velhacas não se darão mais ao luxo de aumentar a evaporação da água, nem terão que engolir transvases da chichizada de nuestros hermanos y hermanas.
Pasme-se porque, para o desenvolvimento do interior, serão enviadas praxes académicas dos alunos Erasmus, bem como os rebanhos de famigeradas cabras sapadoras para o combate a incêndios, evitando, assim, as costumeiras polémicas com os helicópteros.
Finalmente, vamos poder deixar à justiça o que dela é, sem despachos de adiamento que a remetam para o longuíssimo túnel do arrastado e prescrito esquecimento. Haja esperança, porque desta vez é que vai ser!
Uma outra inovação social de primeira grandeza é a de que já poderemos fazer análises ao ADN dos candidatos, como garantia de que lograremos ver, no material biológico recolhido, as plaquetas da sua incorruptibilidade.
O meu vizinho, que também é um carismático candidato, ao submeter-se, com desafronto, a esse exame, teve a desdita de ver a analista, incontida, rir-se tanto dos resultados que, ao apertar as mãos contra barriga, sentiu uma perigosa enxurrada com a falta de domínio dos esfíncteres.
– E os senhores? Questionava ela, dirigindo-se aos correligionários do ousado: – não preferem fazer, antes, uma análise à falta de imunidade? Ao que eles, já de cabeça carbonizada com a avalanche de notícias, opiniões, rádios, televisões, redes sociais, fotos e podcasts, confundindo o termo com a falta de impunidade, fugiram a sete pés. E foi nesse exato momento que prometeram, a si mesmos, nunca mais desdenharem do imenso brilho das procissões lexicais que fazem a marrafa dos ridículos penteados intelectuais de certas cabeçorras da nossa res publica. Ao exibirem o condão da varinha mágica, que tem tudo para transformar promessas em natalícias prendas de sapatinho, sabem que nos fazem desatar compulsivas gargalhadas. Sim, caro leitor, porque, ao que se sabe, o José Milhazes é o único velhinho de nevadas barbas a interessar-se por política.
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