Quem, enquanto aluno e também enquanto professor, não se lembra daquela respeitosa tradição – muito respeitinho com as tradições! – de não se “darem” nem a primeira nem a última aulas? A tradição tem tanta força há tanto tempo que ganhou direito a traduzir-se numa frase latina: prima non datur et ultima dispensatur (a primeira não se dá e a última dispensa-se). Quando penso nisto, de quem mais me lembro é de um colega, ex-seminarista e professor de Português, que fazia questão de, no primeiro e último dia de aulas, sonoramente proclamar, na sala de professores, que as daria (ou tinha dado) todas – mas as tais, essas, nem pensar! E recordava o tal latinório.
Os alunos, esses, dispensavam o latinório, talvez por desconhecimento; não dispensavam era, em bom português às vezes gritado, reivindicar o direito tradicional que lhes assistia. Na primeira do ano, a minha decisão era negar tal direito, justificando-a com um argumento que era ao mesmo tempo uma primeira pitada de argumentação brincalhona. Dizia-lhes assim:
Está bem! Vamos aceitar o princípio que defendeis. Segundo esse princípio, não dou a primeira aula. Se não der a primeira, a segunda aula passará para primeira, que por isso também não será dada. A terceira passa agora a primeira, pelo que também não será dada. E assim aconteceria a todas. Concluindo: se seguíssemos essa ideia, não haveria aulas – o que não pode ser, evidentemente.
Sem grandes explicações, dizia-lhes que o que eu tinha feito era contra-argumentar por redução ao absurdo; e que em aula futura trataríamos de perceber melhor o que era esse isso e como o utilizar. Depois de sossegados os protestos compreensíveis, passávamos à primeira aula, de que alguns alunos ainda dizem guardar boa memória; não sem antes algum aluno mais espirituoso tentar demover-me com uma… contra-contra-argumentação: ó stôr, e qual é o problema de não haver aulas?
Parece-me que, de todas as disciplinas filosóficas, a Lógica é a que mais se presta a brincadeiras do professor e a respostas brincalhonas dos alunos. Brincadeiras de deixar os alunos de boca aberta (vá lá… semiaberta 😉, semi-baralhados). Os paradoxos lógicos são particularmente divertidos e motivadores (porque somos tentados a procurar a solução). São divertidos, mas sérios.
Noutro texto, já tentei explicar, resumidamente, o que é um paradoxo. O paradoxo é um raciocínio aceitável, pelo menos aparentemente; que tem premissas aceitáveis, pelo menos aparentemente; das quais se obtém uma conclusão que, aparentemente, não é aceitável. Algo com piada, mesmo podendo não provocar risos por aí além.
Um exemplo clássico: o paradoxo do barbeiro (há quem considere que não é um paradoxo, mas uma contradição):
Em Sevilha (sendo barbeiro, tem que ser de Sevilha😉), há um barbeiro que faz a barba de todos os homens que se não barbeiam a si próprios. Quem faz a barba a este barbeiro?
Se este barbeiro faz a barba a si próprio, então ele não a faz (fácil de ver: ele só faz a barba a quem não faz a barba a si próprio).
Se este barbeiro não faz a barba a si próprio, então ele faz a barba a si próprio (é ou não? ele faz a barba a todos os que não fazem a barba a si próprios.
Em que ficamos, então? quem faz a barba a este barbeiro?
Tive muitos alunos engraçadinhos (por regra, não os melhores alunos) com humor a sério, divertido. Se não me engano, a maior percentagem foi nas turmas de artes — por regra, turmas também pouco inclinadas para a filosofia.
Um dia, precisamente numa turma de artistas, falávamos de Copérnico (1473-1543), o grande nome da teoria heliocêntrica (a teoria que colocou o Sol no centro do sistema solar, contrariando a teoria geocêntrica, segundo a qual a Terra é que era o centro). Líamos num texto que Copérnico, para desenvolver o heliocentrismo, se tinha sentado imaginariamente no Sol.
Do fundo da sala, a pergunta engraçadinha: “ó stôr, e esse tal Copérnico não se queimou?”. Do meio da sala, chega a resposta fatal: “Não, palerma! Queimou-se o quê?! Não vês que ele foi lá de noite?!”
Algumas piadas tinham que ser previsíveis; mesmo estas, eu apreciava-as, sempre que de algum modo servissem para solidificar o assunto da aula.
Durante alguns anos, o programa do 10º ano incluía algumas aulas sobre os valores; entre outros assuntos, nessas aulas eram explicadas várias características dos valores, entre as quais, a hierarquização. Esta hierarquização era objeto de dúvida frequente, mas não era difícil de explicar e de entender: as hierarquias estabelecem uma relação de preferência entre valores. Por exemplo, preferimos a amizade aos valores económicos. Para explorar este exemplo, perguntei:
“vamos pensar numa determinada soma de dinheiro e na amizade a um amigo; seríeis capazes de atraiçoar um amigo por essa quantia de dinheiro?” E lá chegou a resposta, em forma de piada: “ó stôr, depende da quantia”.
[Este texto está também publicado em http://omeubau.net/piadas-escolares]