No texto anterior, expus um dos motivos que explicam a imagem negativa que se tem da filosofia: os filósofos, não se percebe nada do que dizem. Dedicarei este à segunda razão que leva os alunos a definirem a filosofia como a disciplina com a qual ou sem a qual se fica tal e qual. Esta razão é a inutilidade da tarefa a que se dedicam os filósofos. Inutilidade dos próprios temas e do trabalho: a gente discute, discute, discute, e no fim não chega a conclusão nenhuma.
Sobre a inutilidade das perguntas filosóficas (e o ridículo das respostas), abundam as historietas. Apenas uma amostra:
Num teste final de filosofia, há uma única pergunta: “utilizando os conhecimentos adquiridos nas aulas, demonstra que esta cadeira não existe”. Os alunos escrevem páginas e páginas sobre o assunto; mas um deles entrega apenas uma folha, uns segundos depois de o teste ter começado. No dia da entrega dos testes, soube-se que este aluno de resposta rápida tinha tido a melhor nota. A sua resposta tinha sido: “Qual cadeira?”
Uma variação: “Papá, tive a nota máxima a filosofia: demonstrei que o professor não existe”.
Os professores de filosofia insistem muito na importância das perguntas, uma importância maior do que a das respostas. Segundo alguns, essas perguntas nem têm resposta. E o modelo do filósofo é para muitos aquele ateniense que andava pelas ruas a jurar que “só sei que nada sei”. Esse mesmo, Sócrates, não propriamente um modelo de elegância e de beleza, mas que, ainda assim, despertava paixões em gente como o seu discípulo Alcibíades, o homem mais belo de seu tempo, dizia-se. Talvez por não saber nada ou o fingir, passava o dia a fazer perguntas a quem quer que apanhasse a jeito delas.
Respostas tinha aquele professor de filosofia que, no final da aula, foi abordado por uma aluna, sua grande admiradora: “stôr, — perguntou ela – qual é a melhor pergunta filosófica? Já agora, qual é a melhor resposta?” E o mestre, sem hesitar: “a melhor pergunta é a que acabas de me fazer. A melhor resposta é a que te estou a dar”.
Há um livrinho, com o título O especialista instantâneo em filosofia, publicado pela Gradiva, com algumas técnicas muito úteis na hora de… ser um especialista em filosofia sem grande trabalho (os conselhos do livro ajudam também quem quiser contrariar isso). Cito, sobre a importância das perguntas: “É sempre uma boa ideia ocultar os seus comentários numa pergunta, em especial se não faz qualquer ideia do que está a falar, o que acontece mais ou menos 85 por cento das vezes em filosofia. Assim, deve preferir ‘Não achas que isso pressupõe algumas premissas implausíveis?’ a ‘Isso pressupõe algumas premissas implausíveis’”.
São muitos os filósofos que escreveram textos para justificar esta inutilidade. De um modo geral, defendem que é uma inutilidade útil. Útil para o espírito, a criatividade, blá, blá, blá. E acrescentam alegorias, como a que se segue, que recolhi de A utilidade do inútil, um livro escrito por Nuccio Ordine para demonstrar a utilidade do inútil e a inutilidade do útil.
“Dois jovens peixes vão nadando, e a certa altura encontram um peixe já velho que vai em sentido oposto, lhes faz um gesto de saudação e diz: ‘Vivam, rapazes. Que tal está a água?’. Os dois peixes jovens nadam mais um pouco, e depois um vira-se para o outro e diz: ‘Que raio de coisa é a água?’”. Moral da história, citando o livro: “as realidades mais óbvias, omnipresentes e importantes são muitas vezes as mais difíceis de compreender e de debater”. Eu acrescentaria: fica demonstrado que a filosofia é coisa de velhos (como o peixe da historieta). Não lhe parece? Analise as fotos de filósofos: não é difícil que lhe apareça carona pouco humorada de um senhor muito pensativo, sorumbático, quase-quase antipático. Serei mais específico: procure na NET uma fotografia de Heidegger.
O filósofo espanhol Fernando Savater, autor do popular Ética para um jovem, na sua História da Filosofia sem medo nem pavor inventa dois personagens (Nemo e Alba) para discutir a utilidade das perguntas filosóficas. Quando Nemo goza com a amiga por esta ter admitido gostar de filosofia porque… não servia para nada, Alba dispara uma pergunta: “vamos lá ver: e tu, para que é que tu serves?”. Conclui que as perguntas filosóficas são como as pessoas: não servem para nada e é por isso que são interessantes.
A imagem mais difundida do filósofo é a que o identifica como uma pessoa com uma grande panca, despistadíssimo. A mais conhecida anedota com um filósofo despistado envolve Tales. Tales foi um matemático grego do século VI a.C.; considerado também muitas vezes o primeiro filósofo, toda a gente lhe conhece a teoria segundo a qual a origem de todas as coisas esteve na água. Platão, filósofo da Grécia clássica, conta num dos seus livros que Tales passeava em certa ocasião observando os astros, quando caiu num poço. Uma rapariguinha espirituosa, que passava no sítio, não desperdiçou a oportunidade da gracinha: andava aquele sábio a procurar o que se passava no céu, sem sequer dar conta do que lhe estava por baixo dos pés.
E, no entanto, teremos que ser honestos: algumas destas ideias não são totalmente verdadeiras. Desde o início da filosofia que as coisas não são bem assim. Os primeiros filósofos dedicam-se a várias áreas de estudo: astronomia, física, matemática, biologia,… A novidade desse estudo é pensarem a realidade a partir dela própria e não a partir de entidades divinas. Uma das vantagens dessa novidade é que as conclusões são (mais) exactas… e “funcionam”. É assim que Tales prevê uma boa colheita de azeite e aluga todos os lagares, para ficar com o monopólio do negócio. Bom… parece que continuou pobre, querendo apenas demonstrar que, se o sábio não enriquece, é porque o não pretende. Tolices de filósofo – não acha?
Contudo, nem todos os filósofos desprezaram assim as riquezas – até porque há estômago para alimentar. A filosofia pode ser fonte, directa ou indirecta, de rendimentos. Na Grécia Antiga, os filósofos conhecidos como sofistas cobravam pelas lições que davam. Diz-se que Sócrates não cobrava; já Aristipo, um seu discípulo, fazia-se pagar pelos seus ensinamentos.
Aristipo é considerado o fundador da escola cirenaica de filosofia; a sua doutrina central é: o que nós fazemos deve ter como objectivo o prazer particular do presente. Certamente guiado por esse princípio, o mestre cirenaico era frequentador assíduo da boa mesa de Dionísio, um tirano da época, a quem pedia favores; quando se cansava dele, trocava de senhor – e de mesa. Um dia, Dionísio quis saber porque é que os filósofos são pródigos nas visitas aos ricos, enquanto que os ricos não frequentam as casas dos filósofos. Aristipo terá respondido que os filósofos sabem o que lhes falta; já os ricos, esses, não sabem. Resposta com humor fino – não acha?
Um ateniense pediu a Aristipo que ensinasse um dos seus filhos. Ele aceitou, mas pediu-lhe uma quantia elevada. O ateniense torceu o nariz, alegando que com tal quantia conseguia comprar um bom jumento. Aristipo concordou: “tens razão. Compra-o e ficarás com dois em casa”.
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