No dia 8 de Março assinala-se mais um Dia Internacional da Mulher. Esta celebração foi oficialmente instituída em 1975 pelas Nações Unidas e, atualmente, é comemorada em mais de 100 países que nos fazem recordar o tanto que já foi feito nas últimas décadas e o tanto que ainda há por fazer em matéria de direitos e igualdade. Este ano a data será comemorada com um gosto especial a orgulho. A seleção portuguesa de futebol feminino foi apurada para o Campeonato do Mundo, cuja fase final será disputada na Nova Zelândia na Austrália, entre 20 de Julho e 20 de Agosto. Esta competição mundial conta com a participação de 32 seleções, das quais 12 são europeias e onde se inclui Portugal que se irá estrear no evento. E, apesar da equipa dos Estados Unidos ser favorita ao título, há quem diga que Portugal é um forte candidato à vitória.
Mas quando o futebol nasceu não foi para todos. Durante muitas décadas, esta modalidade foi vista como um desporto exclusivamente masculino onde as mulheres não tinham lugar. Esta realidade tem vindo a mudar e o interesse pelo futebol praticado por mulheres tem vindo a ser crescente. Segundo a FIFA, o último mundial de futebol feminino disputado em 2019 em França foi acompanhado por 1,12 mil milhões de pessoas e a média de audiência por jogo mais do que duplicou quando comparado com o mundial de 2015 no Canadá.
Os primeiros registos de mulheres no futebol datam de 1910 (em França) e de 1911 (na Rússia). Em países como a Itália ou a Alemanha, por exemplo, só se falou em mulheres no futebol após a Primeira Guerra Mundial e mesmo no Brasil os primeiros registos sobre um jogo de futebol disputado no feminino datam de 1921. Em Portugal, é difícil identificar a origem do futebol feminino, mas existem registos de notícias de jogos protagonizados por mulheres realizados em 1935. Ainda a título de exemplo, a seleção nacional portuguesa jogou pela primeira vez em 1981 e só em 1985 é que a Federação Portuguesa de Futebol criou a primeira competição nacional.
São mais de 40 anos que separam o primeiro jogo da seleção de futebol feminina do seu recente apuramento para o mundial. Será este o atraso que leva a afirmação plena dos direitos das mulheres em Portugal e no mundo? Quanto tempo mais terão de esperar as mulheres pelo fim da(s) desigualdade(s)?
Segundo a literatura psicológica existe uma distinção entre desigualdade de oportunidades e desigualdade de resultados. A desigualdade de oportunidades relaciona-se com o acesso desigual (por exemplo, à saúde, emprego ou educação), enquanto a desigualdade de resultados se prende com disparidades de recursos materiais ou condições económicas. As oportunidades reflectem o acesso aos recursos, enquanto os resultados reflectem a propriedade dos mesmos. Desta distinção emerge a ideia de que a igualdade a alcançar deve situar-se não apenas na dimensão da propriedade, mas nas reais oportunidades e opções que permitirão realizar escolhas livres e exercer direitos plenos. Numa situação de igualdade de oportunidades, os resultados dependem apenas de factores pelos quais os indivíduos são responsáveis e não de circunstâncias de desvantagem que lhes são impostas. A literatura aponta que a relação entre a desigualdade de oportunidades e de recursos tangíveis e materiais depende de vários factores, entre eles, o género.
Para além do(s) conceito(s) de desigualdade, pode ainda falar-se de discriminação de género. A discriminação de género corresponde a qualquer acção, voluntária ou involuntária, que exclui ou coloca as pessoas em desvantagem com base no seu género. Esta constitui um dos principais factores preditores de desigualdade, sendo o seu impacto estável ao longo da vida. Embora os homens, em diversas situações, também possam ser negativamente discriminados, a discriminação de género afecta sobretudo as mulheres e é mais grave quando afecta mulheres que pertencem a minorias culturais ou são cidadãs seniores, divorciadas, viúvas ou de família monoparental.
A investigação tem demonstrado que as mulheres enfrentam um risco mais elevado de viver em situações de vulnerabilidade do que os homens. A desigualdade e a discriminação de género que afectam as mulheres podem operar a diversos níveis e em vários contextos, nomeadamente no contexto familiar, escolar, laboral e social, traduzindo-se em problemáticas como a violência doméstica, trabalho não remunerado, maiores jornadas de trabalho, menor estatuto social ou menor acesso à educação. As mulheres representam quase 60% da economia informal, recebem piores salários, estão mais expostas ao risco de desemprego e pobreza, são em maior número na população sénior, mais propensas a viver sozinhas e têm menor acesso a cuidados de saúde específicos (no que diz respeito à saúde sexual e reprodutiva, à prevenção de doenças oncológicas e ao tratamento das doenças que mais as afectam).
Em contexto pessoal e familiar, a realidade de boa parte das mulheres ainda inclui a sobrecarga laboral (por exemplo, trabalho doméstico, cuidado dos filhos e de outros familiares) da qual decorre uma multiplicidade de papéis sociais invisíveis. Trata-se de um quadro de constante vulnerabilidade ao stresse e de desigualdade estrutural profunda. As mulheres estão ainda em maior risco de maus-tratos ao longo da vida, violência e abuso, circunstâncias que se associam a problemas de saúde física e psicológica. Dados recentes sugerem que as mulheres apresentam taxas mais elevadas de stresse, ansiedade, depressão, perturbação de stresse pós-traumático e perturbações do comportamento alimentar, em todas as idades e em todos os grupos sociais. As mulheres também têm uma probabilidade 1.5 mais elevada de tentar o suicídio (embora sejam os homens que apresentam maior probabilidade de morrer por suicídio).
No contexto laboral, a discriminação de género é particularmente pronunciada, pois para além da remuneração desigual, as mulheres estão mais sujeitas a assédio moral e sexual e a regras implícitas que as colocam em desvantagem. As mulheres estão mais sujeitas a estereótipos de género, prevalecendo a percepção de que têm mais características associadas aos afectos (por exemplo, são tolerantes e sinceras) e menos associadas às competências (por exemplo, são menos competitivas e independentes), ao contrário dos homens. Estes mitos levam a avaliações de desempenho enviesadas, onde perante o mesmo nível de desempenho, os homens são avaliados mais positivamente do que as mulheres, influenciando o acesso ao trabalho e à progressão na carreira, representando uma menor probabilidade de acesso das mulheres a posições de chefia e de poder e perpetuando as conhecidas desigualdades salariais: as estatísticas europeias indicam que as mulheres auferem, em média, menos 20% do que os homens, sendo que as mulheres que ganham menos do que os homens têm uma probabilidade significativamente superior de desenvolver sintomatologia depressiva do que seus homólogos do sexo masculino.
Infelizmente, a pandemia COVID-19 veio, como em outras áreas, contribuir para um retrocesso nos esforços e conquistas realizadas até então. Sabe-se que durante e após a pandemia o género feminino esteve e está mais sujeito a abandonar a escola, à exploração sexual, à violência doméstica, à exposição ao risco de infecção (nomeadamente através da prestação de cuidados), às dificuldades de equilibrar a vida pessoal, familiar e profissional.
O conhecimento proveniente da Ciência Psicológica permite compreender as situações e os determinantes da desigualdade e da discriminação. Pela sua compreensão privilegiada destes fenómenos os Psicólogos e as Psicólogas estão bem posicionados para compreender os impactos multidimensionais na Saúde Psicológica das pessoas que vivem situações de desigualdade e discriminação, neste caso específico, com base no género. Sendo que nenhuma intervenção ou política pública é, por si só, suficiente para resolver os desafios associados à desigualdade e à discriminação de género, é necessário implementar uma abordagem integrada e transversal – à saúde, educação, comunidade, habitação, emprego, investigação e media – que tem nos Psicólogos e nas Psicólogas um dos seus principais agentes, pela sua presença nos diversos contextos, pela sua capacidade para criar pontes entre diferentes entidades e pelo seu dever de advocacia em prol da justiça social, neste caso, dirigida às mulheres.
Não sei se a Patrícia Morais, a Carole Costa, a Andreia Norton, a Tatiana Pinto, a Ana Borges, a Diana Silva (só para mencionar algumas das jogadoras da nossa seleção nacional) têm a noção de que a sua capacidade de superação se tornou uma inspiração para muitas mulheres portuguesas e que está a mudar o olhar de muitos homens sobre aquilo que as mulheres são capazes. Da minha parte, fica o compromisso de seguir este Campeonato Mundial de forma aguerrida e de continuar a dar este e outros exemplos de superação, procurando nos contextos onde exerço a minha prática profissional contribuir para promover a justiça social e a equidade e diminuir o sofrimento das mulheres, nomeadamente através da melhoria do seu bem-estar e da qualidade de vida e da facilitação do seu acesso a cuidados de saúde psicológica.
Para mais informações, consulte os documentos “Crise económica, pobreza e desigualdades – Relatório sobre o Impacto Socioeconómico e Saúde Mental” (2020) e “Combater as Desigualdades e a Discriminação – Evidência da Ciência Psicológica e Desafios Societais” (2022), elaborados pela Ordem dos Psicólogos Portugueses.