Agarrado à atual doutrina do sono, ando num estado caótico, implicativo com meio mundo, resmungão e insubordinado com outro meio. Já houve quem me sugerisse uma infusão com erva doce, curcuma e dente-de-leão … mas, não! Não acredito no remédio caseiro, e não posso perder tempo a agonizar com o travesseiro. Decidi, à viva força, que tenho que dormir, pelo menos, oito horas por noite, para me manter no entusiástico trilho da longevidade. Se não dormir esse tempo todo, entro em parafuso.
Perturba-me pensar que a minha mãe diabolizava tanto o sono, que ao ralhar comigo para acordar, se insurgia, praguejando que “quem muito dorme, pouco aprende”. O meu pai, que era padeiro, e sempre se levantava quando o dia se vestia de noite, para entregar o matinal pão quentinho aos fregueses, também me assegurava, a pés juntos, que havia muito tempo para dormir quando acabássemos o nosso contrato a prazo com a vida.
Acredito que o importante é dar um combate feroz, sem tréguas, a essa inimiga tão mortal da Humanidade neurótica do século XXI, que é a insónia, a qual tanto prejudica o nosso tão precioso ciclo produtivo individual
Contrariando estes ensinamentos, o atual estilo de vida, ou o presunçoso lifestyle, impôs-me a escravatura do sono, através da abolição das insónias. Passou-me a certidão de maluquinho do ginásio, enviando-me para o mundo dos sexagenários que querem manter as suas capacidades cognitivas, evitar a fatalidade da degenerescência cerebral, manter a vitalidade muscular de um Schwarzenegger, e viver são muito mais tempo. Só assim, poderei evitar a atrofia do cérebro e a destruição precoce dos músculos, que acontece com frequência aos sedentários a partir dos 30.
É, no abraço a esta crença na longevidade pelo sono, que faço parte da imensidão daqueles portugueses que vive aquecendo os cartões de débito, a cada momento, afogando os euros em comprimidos para dormir.
Pelo menos, 8 horinhas do meu impositivo sono ninguém me pode tirar, porque quanto menos durmo, menos vivo. A falta de sono é um prenúncio de mortalidade e eu quero colaborar com a “mãe natureza”, que levou tantos milhões de anos a aperfeiçoar-me, fazendo-me passar daquela figurinha horrível de símio Australopithecus ao modernaço bípede que hoje sou.
Mas que vivo atormentado com o facto de sermos dos menos madrugadores e dos mais atrasados da Europa, lá isso vivo. Será que o atraso português tem alguma coisa a ver com o nosso sono tardio? Uma provável relação causa efeito, que ainda não tive oportunidade de discernir, porque só drunfado consigo dormir bem, porque só consumindo uma porrada de benzodiazepinas, de fácil acesso, com a prescrição médica pelo SNS, é que estou a cem por cento.
Confesso que, às vezes, acordo meio zombie e disfarço para que o patrão, amigos e público não deem por isso. Não fazendo de santo de pau carunchoso, ou de puritano que não sou, confesso que, com ou sem indicação médica, também recorro acidentalmente a um hipnótico indutor do sono, também comparticipado pelo SNS.
Acredito que o importante é dar um combate feroz, sem tréguas, a essa inimiga tão mortal da Humanidade neurótica do século XXI, que é a insónia, a qual tanto prejudica o nosso tão precioso ciclo produtivo individual.
Mas admito que ainda vivo recalcado, com saudades do tempo em que não tinha o menor temor das insónias, que chegava a abraçá-las, levando uma boa parte do tempo deslizando, com elas, entre fantasias criativas e ideias desinibidas, que me faziam viver experiências prodigiosas. Arranjava namoradas, resolvia problemas de matemática, equações inteirinhas, palavras únicas carregadinhas de um brilhantismo digno de registo num bloco, pela calada da noite, para que, ao amanhecer, pudesse acreditar que não eram perfeitamente idiotas.
Era nessas noites de despertares precoces, de transtornos ansiosos, que tomava arrojadas decisões, desenvolvia hipóteses de trabalho, violava leis abstrusas, elaborava partes das teses de mestrado e de doutoramento. Nos momentos de discussão académica, o meu orientador chegava mesmo a confirmar-me que algumas, poucas, embora, eram mesmo proveitosas.
E, caramba, como aproveitava a minha hibernação onírica para dar a oportunidade a pensamentos e ideias fabulosos que o estado de vigília estupidamente inibia, travado pela racionalização geral do nosso viver.
Agora, ando cabisbaixo, num constante estado de preocupação e de desatino. Ao menor sintoma de aproximação sorrateira de uma insónia, com pezinhos de lã, logo lhe replico que não há pão para malucos. Expulso-a com o remédio santo. Enfrasco-me na obsessão do comprimido e lá vai mais um, goela abaixo, contra qualquer insonolência inconveniente, por muito criativa que se insinue ser.
E não é que as cabronas, quanto mais lhes resisto, menos consigo dormir? Como não há bela sem senão, o que me entristece mesmo é, que nesta obsessão de estar sempre operacional no dia seguinte, esteja a estreitar, cada vez mais, o espaço para o pensamento, a fantasia, o devaneio, que instigam a ausência de limites para quem sonha acordado.
Na vanguarda revolucionária da abolição das insónias, que vamos fazer contra este futuro catastrófico de resistência às mesmas? Afinal não são elas que nos libertam de recorrentes desejos reprimidos, que nos propiciam ideias criativas, e que, tão fortemente, nos libertam do genocídio de pensamentos obstruídos pelos fármacos psicotrópicos?
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