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Paulo Serra é doutorado em Literatura na Universidade do Algarve e investigador do CLEPUL
Nesta magnífica obra, publicada pela Dom Quixote, narram-se em 716 páginas um «retábulo definitivo sobre mais de 30 anos da vida no País Basco sob o terrorismo», centrando-se na história de duas famílias cujos laços pareciam inquebrantáveis até serem divididas por um crime político.
A intriga é desfiada numa desordem cronológica, o que revela mestria narrativa e torna a obra muito mais interessante de ler. A narrativa, constituída por capítulos breves, é narrada numa perspectiva descentrada pois alterna entre as várias personagens, o que permite uma focalização imparcial, em que as questões e situações retratadas são apresentadas e representadas a partir da óptica de cada um. O narrador tenta ao máximo subsumir-se por trás das vozes das personagens, ao ponto de a narração na terceira pessoa passar, frequentemente, para a primeira pessoa: «Agradeceu em tom neutro. Obrigado, porquê? Por nada. Era uma forma de fingir que mantinha o controlo. E desligou. As minhas costas e atrás delas a minha mãe, e o difícil momento de nos voltarmos. Evitou olhar para ela de frente para que não pudesse ler nos seus olhos.» (p. 422)
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Além disso, surgem ainda erros gramaticais especialmente nas formas verbais, mal conjugadas pelas personagens, numa aproximação ao seu “falar”, o que por vezes também transparece na voz narratorial.
Mas a opinião do narrador/autor surge sempre ao de cima, conforme denuncia a incompreensão face aos atentados e homicídios, ou até mesmo na mudança sofrida pelo jovem filho de uma das famílias que ingressa na ETA em adolescente, e é suspeito de ter morto o pai da outra família, ao mesmo tempo que tenta fundamentar o fanatismo dos bascos que não aceitam serem confundidos como espanhóis.
A certa altura reflecte-se inclusivamente no papel da literatura e no seu peso político ou de intervenção social: «O euskera, alma dos bascos, precisa de se apoiar numa literatura própria.» (p. 395)
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«Patxo e ele exercitaram-se na montagem e desmontagem de armas. Aprenderam a preparar armadilhas mortíferas e carros bomba. Que mais? Armvam também mecanismos temporizadores. (…) Ensinaram-lhes tudo o que era preciso sobre esconderijos e «caixas do correio», também a abrir fechaduras de carros. Explicou-lhes como deviam comportar-se no caso de os deterem.» (p. 432)
Sem medos, Fernando Aramburu coloca o dedo na ferida e põe a nu uma situação bem controversa e actual, num romance que lhe tem valido diversos prémios e se tornou um sucesso de vendas.