Os Dias do Ruído, de David Machado, é o quinto romance publicado pela Dom Quixote deste autor, vencedor do Prémio da União Europeia para a Literatura, em 2015, com Índice Médio de Felicidade (que deu origem a um filme). Um autor que leio atentamente desde os primeiros livros.
Uma prosa escorreita, escrita na primeira pessoa, que percebemos depois tratar-se de um eu no feminino. Não há capítulos, mas sim pequenas, por vezes muito breves, secções de texto – quase como se lêssemos publicações, limitadas a alguns milhares de caracteres, nas redes sociais (naquelas que ainda envolvem texto). Uma voz que soa dura, fria, que se reconhece sarcástica, ou então presa de um “torpor emocional” declarado. Até porque, desde há 2 anos, passou a viver na pele de uma personagem ficcionada.
Corre o ano de 2019. Laura matou um homem há 2 anos.
Um romance com uma consciência aguda do poder das redes sociais e de como toda a verdade pode ser resultado de uma manipulação
Desde então corre o mundo, a recontar a sua história, quase sempre respondendo às mesmas quase invariáveis perguntas nas entrevistas que lhe fazem nos mais variados países. É tão adorada quanto vilipendiada nas redes sociais – ao ponto de começar mesmo a receber ameaças por email e por carta.
Em tempos foi repórter de conflitos e guerra; foi até baleada no Afeganistão. Portuguesa vive agora entre aeroportos e quartos de hotel que lhe dão uma segurança anódina, depois de ter escrito um livro que parece ter pouco de narrativo, chovem convites para apresentações e debates, ofertas de editoras, propostas de adaptação ao cinema e televisão. Entretanto trabalha no seu segundo livro, entrevistando mulheres em campos de refugiados de continentes distintos.
A certa altura, para se proteger, esta mulher que vive no centro da voragem das redes sociais decide regressar ao sítio onde ninguém a esperaria encontrar, a casa da sua infância. É também aí que tem de reescrever a sua história. Simultaneamente, Laura toma consciência de como a sua infância vive de uma ficção, presa na teia de um “tortuoso enredo fabricado”, vítima manipulada pela “narrativa inventada” pelo seu pai (p. 216).
Um romance com uma consciência aguda do poder das redes sociais e de como toda a verdade pode ser resultado de uma manipulação: “sem tirar a faca do seu pescoço, afasto o meu corpo do dele (…), o suficiente para a minha cara aparecer no vídeo com a iluminação necessária, para que o dramatismo da composição seja justo e garantido.” (p. 229)
Na voz narrativa de Laura perpassa ainda, por vezes, a percepção do que compõe distintamente a escrita no feminino: será esta eficazmente objectiva ou fatalmente tingida pelo “filtro preguiçoso das emoções”? (p. 51)
David Machado nasceu em Lisboa em 1978. É o autor dos romances Deixem Falar as Pedras, Índice Médio de Felicidade (Prémio da União Europeia para a Literatura, Prémio Salerno Libro d’Europa), Debaixo da Pele e A Educação dos Gafanhotos.
Publicou vários contos para crianças, entre eles, A Noite dos Animais Inventados (Prémio Branquinho da Fonseca), O Tubarão na Banheira (Prémio Autores SPA/RTP), Eu Acredito, Uma Noite Caiu Uma Estrela, O Alfabeto Nojento, Viagem Ao Centro do Escuro, O Meu Cavalo Indomável (Prémio Autores SPA/RTP) e Esta História; assim como os romances juvenis Não Te Afastes e Os Reis do Mar (ambos seleccionados para catálogo White Ravens).
Os seus livros estão publicados em mais de vinte países.
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