Ao entrarmos nas primeiras páginas de Milkman, de Anna Burns, publicado pela Porto Editora, deparamo-nos com alguma dificuldade, um certo estranhamento face a uma escrita torrentosa, feita de frases distendidas, num registo muito próximo da oralidade, onde as palavras se repetem em eco, num mundo onde nada é mencionado pelo nome, nem mesmo a protagonista e as irmãs e cunhados.
A irmã do meio tem dezoito anos e vive numa cidade, num país, onde a violência explodia à mínima coisa, onde apesar de haver tiroteios, bombas, protestos, confrontos, esta jovem gosta de caminhar enquanto lê, e sempre um romance do século XIX.
E, subitamente, somos agarrados por uma frase como esta, que pode definir toda a narrativa, e é igualmente tão próxima da nossa própria realidade (considerando alguns dos mais recentes eventos no país):
«Ele acabava de trazer à conversa a questão da bandeira, a questão das bandeiras e dos símbolos, que era instintiva e emocional porque as bandeiras se inventaram para serem instintivas e emocionais (amiúde patológica e narcisicamente emocionais), ele estava a referir-se à bandeira do país «do outro lado do canal», que era também a bandeira da comunidade «da ponta de lá da estrada». E essa não era uma bandeira que a nossa comunidade acolhesse de braços abertos. Não era uma bandeira que a nossa comunidade acolhesse de todo.» (p. 33)
E, subitamente, somos agarrados por uma frase como esta, que pode definir toda a narrativa, e é igualmente tão próxima da nossa própria realidade (considerando alguns dos mais recentes eventos no país):
«Ele acabava de trazer à conversa a questão da bandeira, a questão das bandeiras e dos símbolos, que era instintiva e emocional porque as bandeiras se inventaram para serem instintivas e emocionais (amiúde patológica e narcisicamente emocionais), ele estava a referir-se à bandeira do país «do outro lado do canal», que era também a bandeira da comunidade «da ponta de lá da estrada». E essa não era uma bandeira que a nossa comunidade acolhesse de braços abertos. Não era uma bandeira que a nossa comunidade acolhesse de todo.» (p. 33)
A voz deste romance é tão original que nos custa a entrar mas, conforme nos apercebemos de que a narradora estabelece um longo solilóquio com o leitor, onde as mais variadas questões da actualidade são tratadas com ironia e ambiguidade, rapidamente nos leva na sua corrente, na sua prosa-palco de uma dialéctica, de natureza alegórica, de um país sem nome que existe por oposição ao que está “do outro lado” (e pode remeter para o conflito entre as duas Irlandas), numa comunidade fechada, onde o rumor e o boato impera, uma sociedade patriarcal onde o cunhado três é aliás conhecido por não regular bem, com aquela sua «atípica estima em que tinha tudo quanto se reportasse ao feminino» (p. 18).
Anna Burns nasceu em Belfast em 1962, vive em Inglaterra e este seu romance foi vencedor do Man Booker Prize 2018, National Book Critics Circle e Orwell para ficção política.