Um dos nomes maiores da literatura, Herman Hesse venceu o Prémio Nobel de Literatura em 1946 e assinala-se em 2019 o centenário da primeira das grandes obras do autor alemão, com este livro agora reeditado pela Dom Quixote.
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Um romance de formação, onde se dá a conhecer a infância e juventude de Emil Sinclair, ao jeito de romances como Retrato do Artista quando Jovem, de James Joyce, As perturbações do Jovem Torless, de Robert Musil, ou Werther, de Goethe. Contudo, a narrativa de vida deste jovem burguês vai mais longe, conforme a sua existência é abalada pela ameaça de um jovem malfeitor, que o quer extorquir e manipular, e a sua alma é devassada por um conflito interno entre o mundo da ilusão – isto é, o real – e o mundo real – o da verdade espiritual. Irremediavelmente desadaptado da vida familiar, do conforto burguês, e cheio de perguntas, o nosso herói é salvo pela amizade de um novo aluno na sua escola de Latim, que se torna uma constante na sua vida, como um mentor, mesmo quando se separam por alguns anos.
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Max Demian tem um pensamento profundo e revolucionário, capaz de contestar as verdades mais inabaláveis, como a marca de Caim ser não um sinal físico mas uma qualidade espiritual que o distinguia e lhe conferia uma superioridade sobre os homens. Max Demian tem essa marca e é por a distinguir em Sinclair que se aproxima dele. E não é por acaso que o nome de Demian, sempre descrito de forma misteriosa, como um ser intemporal, pode ser lido como um sinónimo de Demónio, da mesma forma que a sua mãe se chama Eva. Quando na sua juventude Sinclair se torna um frequentador de tabernas e um alcoólico, numa orgia destruidora do ser, ainda que, curiosamente, mantenha a sua castidade intacta ao longo de todo o livro, o herói condensa em si a dualidade do ser humano mas também a crise de valores advinda da Primeira Guerra Mundial e o prenúncio de uma nova guerra que deflagra no final do romance.
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«É uma comunidade de indivíduos com horror ante o desconhecido que existe dentro de si. Todos sabem que as suas normas de vida já não são corretas, que vivem segundo padrões antiquados. Nem a sua religião nem os costumes se adequam àquilo de que, atualmente, necessitamos.» (p. 150)
Na obra literária de Herman Hesse é constante esta dicotomia (necessária) entre o mundo das ideias, imbuído de um misticismo oriental resultante de uma viagem ao Oriente, de que resultou um dos seus mais emblemáticos romances, Siddhartha, publicado 3 anos depois de Demian e que perpassa ainda em Narciso e Goldmundo ou O Jogo das Contas de Vidro. Todos os seus livros são incontornáveis.
(CM)