Advento, de Gunnar Gunnarsson, publicado em 1936, é um grande clássico moderno da literatura europeia, de um autor que a par do nobelizado Halldór Laxness ocupa um lugar de topo na literatura islandesa, que nos chega com chancela da Cavalo de Ferro e tradução de João Reis (como é habitual com os autores nórdicos). E é justamente de montanhas que nos fala este livro. Uma história aparentemente singela, que se poderia resumir em poucas palavras, e que se lê em poucas páginas, e que no entanto ressoa a tanto, das sagas antigas aos grandes clássicos da literatura universal – inclusivamente terá inspirado Hemingway a escrever O Velho e o Mar. A história de um homem perante as adversidades da natureza e a grandeza do mundo.
Há 27 anos que, todos os anos, no primeiro domingo de Advento, Benedikt, um homem simples, com 54 anos, ruma às montanhas. Tinha justamente 27 anos quando empreendeu pela primeira vez essa travessia (que aqui se reveste de contornos alegóricos, poéticos) rumo ao deserto branco, a uma possível morte num lugar inóspito e parco em recursos, evitado por todos os que ali vivem. Benedikt não é, contudo, um homem solitário. Tem por companhia os seus dois fiéis animais, um cão e um carneiro, Leão e Nodoso, que com ele compõem «a trindade» – animais que naturalmente não falam, mas que comunicam com ele e são retratados no livro, e estimados pela comunidade, quase como se se tratassem de homens, apenas parcos de palavras, como aliás o próprio protagonista.
Antes de encetar a sua viagem, Benedikt cruza-se ainda com outras pessoas – ora adjuvantes, ora opontentes (na medida em que o atrasam, ao pedir a sua ajuda), que embora pareçam saber que não o podem demover, não deixam de o alertar – como se aquela pudesse ser a sua última viagem. Um périplo, cumprido religiosamente (e também há aqui leves referências ao texto bíblico), que primeiramente se anuncia apenas como se se tratasse de uma peregrinação ou promessa, mas que é, afinal, uma missão, pois, páginas adiante, constatamos como afinal Benedikt arrisca a sua vida para resgatar ovelhas perdidas nas altas pastagens, prestando um serviço à comunidade.
Um livro que ressoa – a propósito dessa luta contra a fúria da natureza, contra a imensidão branca – tantos outros, desde Frankenstein a Moby Dick (Mandíbula, outro romance, cheio de subtexto, lido justamente antes, explora esse tema de forma brilhante). Há ainda um enriquecedor posfácio do autor Jon Kálman Stefánsson que lança luz sobre o texto, revelando por exemplo como este parte de uma história real, ou de como o autor, que viveu na Dinamarca (na altura, a Islândia era um país pobre, pouco desenvolvido, que pertencia ao Reino da Dinamarca), situava sempre a acção num cenário islandês, embora as suas narrativas façam eco da confusão que grassava na Europa e da incerteza do destino do mundo.
“Porque o homem se agarra às suas coisas, agarra-se a si mesmo e às suas coisas até para lá da morte, e receia perder a vida, a mais real de todas as coisas reais, a mais frágil de todas as coisas frágeis, a mais eterna de todas as coisas eternas (…) Teme a solidão que é a própria condição da sua existência, (…) e teme que Deus se esqueça dele.” (p. 24)
Gunnar Gunnarsson (Valthjofsstadur, 1889 – Reiquiavique, 1975), dos nomes mais importantes da literatura islandesa, é autor de uma extensa obra, entre poesia, romance e teatro, que lhe trouxe fama internacional. Foi, diversas vezes, apontado ao Prémio Nobel de Literatura.
As suas principais obras foram escritas em dinamarquês, incluindo a celebrada autobiografia ficcionada em cinco volumes Kirken paa bjerget [A Igreja na Montanha] (1923-1928), Svartfugl [Pássaro Negro] (1929), ou Advento (1936), e mais tarde traduzidas para islandês pelo próprio autor, que regressou à terra natal em 1939 para aí permanecer até à sua morte.
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