Ian McEwan é um dos grandes autores ingleses da actualidade publicado entre nós pela Gradiva. De entre a sua obra podemos destacar livros como O Inocente, Estranha Sedução, A Criança no Tempo, O Fardo do Amor e Expiação, adaptados ao cinema. A adaptação de A Praia de Chesil estreou este ano e foi também aqui relembrado. E pode ver agora nas salas de cinema A Balada de Adam Henry, com aquela que promete ser uma das melhores interpretações de Emma Thompson.
A Balada de Adam Henry revela uma linguagem cinematográfica, num zoom contínuo sobre o espaço e a personagem em cena que o observa:
«Londres. O último período do ano judicial começou há uma semana. Junho com um tempo implacável. Fiona Maye, juíza do Supremo Tribunal, em casa num fim de tarde de domingo, deitada de costas numa chaise longue, a olhar o extremo da sala para além dos seus pés revestidos de collants, a contemplar uma perspectiva parcial da estante embutida junto da lareira e, de um lado, junto de uma janela alta, uma minúscula litografia de Renoir representando uma banhista, que ela comprara por cinquenta libras há três anos. Provavelmente uma falsificação. Por baixo dessa imagem, no centro de uma mesa redonda, de nogueira, uma jarra azul. Não se recorda de como lhe foi parar às mãos. Nem de quando lhe pôs flores pela última vez. A lareira não é acesa há um ano.» (pág. 9).
A descrição continua num ritmo fluído que entretece o banal e o íntimo, onde se desenha um quadro realista a partir do qual serão lançadas pinceladas que permitem entrar na mente da personagem.
Fiona Maye é essa personagem central, com quem entramos nessa sala, uma juíza do Supremo Tribunal que julga casos do Tribunal de Família. Se nos primeiros momentos em que a personagem se começa a desvelar Fiona pode parecer-nos fria, ela é uma mulher que mesmo lidando com os casos mais trágicos tenta manter a sua natureza humana. Pode-se perceber que ainda existe bondade e generosidade em si quando nos é dado a ler que Fiona tem, entre a sua lista de afazeres, o escrever uma carta de recomendação para que o filho autista da sua empregada de limpeza possa ser admitido numa escola. Mas esse cenário de calma aparente é manchado pelas recordações de Fiona enquanto passa mentalmente em revista a discussão recente com o marido. Tal como Fiona parece viver e envolver-se de forma apaixonada no seu trabalho, o que lhe pode ter retirado a capacidade de se ligar emocionalmente da mesma forma a alguém, o marido é, de modo diametralmente simétrico, bastante frio e prático na forma como lhe apresenta os seus motivos para querer o divórcio de modo a poder tentar uma segunda vida com a sua amante bastante mais nova.
É particularmente interessante a forma como no romance se define o contexto social e cultural de uma sociedade em ebulição, pois da mesma forma que Fiona dita sentenças no seu tribunal, encontramos ainda noções ou constatações críticas como: «Na maior parte dos casos, a riqueza não conseguia proporcionar felicidade. Os pais depressa aprendiam o novo vocabulário e os pacientes procedimentos em matéria de legislação, e ficavam aturdidos ao verem-se envolvidos num combate perverso com aquele a quem outrora amavam.» (pág. 11).
Em alguns momentos adensa-se ainda mais esta aparente intenção crítica ou busca de minudenciar a realidade de outras formas de viver que, todavia, têm de ser julgadas pela mesma lei, mesmo que se tratem de outros povos ou etnias a viver em solo inglês. É esse o caso de Adam Henry, um jovem que tal como os pais é Testemunha de Jeová e que apoiados na sua fé recusam o tratamento que o hospital quer aplicar ao rapaz: uma transfusão de sangue.
Mas Adam Henry mais do que um jovem é um belo rapaz de 17 anos, a pairar entre a vida e a morte e no limiar da vida adulta, quase a atingir a maioridade que o torna legalmente responsável por si próprio, sem interferência de pais, e parece ainda representar para Fiona o filho que nunca teve bem como um estranho flirt amoroso que pode vir compensar a ruptura recente que o marido procurou impor ao seu casamento de trinta anos.