Era uma vez um dia igual a tantos outros dias no “novo normal”: todos ficavam em casa. Uns por estarem doentes, outros por receio de ficarem doentes, alguns por medo das sanções do governo e outros ainda por convicção e profundo respeito pelos profissionais de saúde.
Incumpridor, o desalento saiu à rua e esticou-se ao alto, ao largo e ao comprido, passeando ufano pelas alamedas desertas. Contemplou as lojas fechadas, os cafés e restaurantes vazios. Não se via vivalma na praça grande, nem no mercado, nem sequer nas paragens de autocarro. O desalento esfregou as mãos de contente, tinha agora todas as condições para colocar o seu plano em marcha. Com falinhas mansas seduziu o medo, a tristeza e o desespero para que se tornassem seus aliados. Com argúcia explicou ao pequeno exército o seu plano estratégico. Ele, o desalento, iria à frente, comandando as tropas e abrindo caminho.
O medo, capaz de se introduzir mesmo através dos orifícios mais pequenos, seguiu-se-lhe. Atingiu as gentes contraindo músculos, causando frio interior, destruindo iniciativas e matando gestos mal eles se esboçavam. O medo colocou palas em todos os sentidos. O olhar encolheu de amplitude ao ponto de um servilismo inquietante. Os ouvidos passaram a captar apenas sons de angústia e gemidos de dor. O paladar reduziu-se a um só gosto, tornando-se incapaz de diferenciar sabores. O olfacto prisioneiro entre as quatro paredes de casa, esqueceu o perfume das flores e o odor de maresia; pelas narinas entrava apenas o cheiro a mofo das almas encarceradas. Sobre o tacto o medo nem teve necessidade de agir. Dir-se-ia mumificado por tanta falta de uso! O tacto é um sentido do perto e agora era mandatário estar longe.
O medo escavou então um portão enorme por onde a tristeza entrou sem dificuldade. Munida dos seus muitos moinhos, a tristeza reduziu os ânimos a picadinho, triturou os impulsos, por todo o lado onde se ia instalando foi moendo, moendo, moendo… Qual exército de térmitas devorando os alicerces da alma!
Agora que já nada resistia à vaga do desespero ela só tinha que chegar. Inversamente proporcional às forças do adversário, quanto menor e mais fraco este, mais ela se agiganta. E assim, as almas naufragaram quase já sem resistir.
Foi então que no berço mais humilde do mundo se agitaram as palhas, que brilharam mais que o ouro refulgente. Esse brilho atingiu os céus e uma estrela rasgou a negrura da noite apontando o caminho. No centro das palhas um bebé ria. Era uma gargalhada cristalina cuja vibração chegava ao centro da terra e ao cume dos céus.
O desalento assustou-se e resolveu atacar o menino desprotegido deitado nas palhinhas.Mas a criança brincou com ele, pegou-lhe pelo enorme nariz de Pinóquio e abanou-o de um lado para outro ao ritmo do seu riso, numa dança estonteante. O desalento dissipou-se à alvorada enquanto o riso do menino tilintava nas copas das árvores e viajava nos braços do vento. E esse riso entrou pelas frinchas das janelas, pelas fechaduras das portas, pelas chaminés das casas, e todas as crianças do mundo desataram a rir. Era uma gargalhada quente e cósmica, uma alegria contagiante, que deixou perplexos adultos e idosos. Então, nesse momento de espanto, o riso do menino recém-nascido, num voo de borboleta, começou a adejar no coração das gentes.
A princípio era um quase nada, um leve palpitar, que pouco a pouco se foi tornando cada vez mais intenso. E o riso soltou-se em gargalhada, e fez cócegas ao medo, desconcertou os moinhos da tristeza e evaporou as águas do desespero.
Dos olhares caíram as palas e o horizonte espraiou-se amplo, imenso, esperançoso. Nos ouvidos tilintava o riso com timbre de ouro. Apurou-se o olfacto que pôde então captar os cheiros da terra, o aroma das nuvens e o perfume dos seres. Timidamente, o tacto desenrolou as ligaduras que o cobriam e deixou que a brisa lhe acariciasse a pele. Então, o gosto recordou-se do sabor de um beijo. Nesse momento, no coração de cada um, floresceu a certeza inabalável de que o tempo dos abraços há-de voltar!
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de dezembro)